22 anos sem Luiza Barreto Leite – 3

(☼01/10/1909, em Santa Maria, RS, † 01/12/1996 no Rio de Janeiro, RJ)

DIÁRIO DE VIAGEM

Isto é revolução?

Luiza em Natal, em fevereiro de 1963. Registro feito pelo fotógrafo oficial do Palácio da Esperança.

Luiza era um excelente jornalista. Em 1963, viajou ao Rio Grande do Norte “enviada pelo permanentemente acusado de loucura lírica, Embaixador Paschoal Carlos Magno, Secretário Geral do Conselho Nacional de Cultura, incumbida de missão não menos doida: incentivar, reformar, criar, formar, orientar e vários outros verbos, conforme o caso, o interesse e o grau de alfabetização dos inscritos nos cursos de emergência para atores, professores, etc”. Cumpriu sua tarefa e combinou-a com as de repórter, escrevendo sobre o que acontecia em terras potiguares e publicando fatos, análises e opiniões desconhecidos para os leitores do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, como para a maior parte dos brasileiros. Este primeiro artigo foi publicado à página 05 do 3º caderno (Suplemento Dominical), no dia 17 de fevereiro de 1963.

O Brasil era, então, governado pelo Presidente João Goulart, que iniciara, assim como o Governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar, reformas classificadas de “Revolução Vermelha” por seus adversários. Os progressistas do PSD (Partido de Juscelino Kubistchek), apoiando-se no projeto de iniciativa ianque “Aliança Para o Progresso”, lançou programas sociais que se confundiam, em muitos aspectos, com os desenvolvidos pelos trabalhistas de Jango e os socialistas de Arraes, para fazer-lhes frente. Luiza relata neste e em outros artigos a “Revolução Branca” iniciada pelo Governador Aluízio Alves. Pouco mais de um ano depois, as reformas “vermelhas” de Jango e Arraes e “brancas” de Aluízio Alves foram interrompidas e destruídas pelo Golpe Militar. Mas o potiguar não perdeu o mandato, enquanto Jango teve que ir para o exílio e Arraes foi preso e depois exilado. Com a palavra Luiza:

Natal, fevereiro — Foi o próprio Calazans quem disse:

— Fazer revolução não é pegar em armas e derrubar governo, fazer revolução é educar, plantar, criar condições para o povo evoluir, estudar, trabalhar e adquirir consciência. É isto que o governo Aluízio Alves está fazendo, uma revolução de cima para baixo. E é por isto que andam dizendo por aí que Aluízio pegou o dinheiro da “Aliança” para com ele fazer a revolução. Não importa o que digam, importa apenas o que estamos fazendo. Os americanos deram dinheiro para a Educação e nós estamos educando. Está ou não está certo?

Sim, quem disse isso foi aquele mesmo Calazans Fernandes; excelente repórter internacional, tão conhecido no Rio por suas aventuras mais ou menos malucas, por sua audácia desmedida, por sua imaginação mirabolante, que, desta vez, sumiu de nosso ramerrão carioca, não para correr terras desconhecidas e distantes, mas para voltar à sua própria, assumindo a responsabilidade, ao ocupar a Secretaria Educação, não só de alfabetizar, mas de educar para a vida, ensinando-o a raciocinar, todo o povo do Rio Grande do Norte. Mas a tarefa não é apenas educar e sim educar a jato. Alfabetizar em quarenta horas e ir ao mesmo tempo, através do admirável método do professor pernambucano Paulo Freire,  sobre o qual falarei a seguir, parece impossível para quem não viu o que vi em Angicos, mas para quem teve oportunidadede observar o milagre, só uma pergunta ocorre: “E depois, o que virá depois?”.

Pois é justamente esta a pergunta que anda de boca em boca na cidade de Natal. Eu a ouvi de um motorista de táxi, de estudantes, de jornalistas, de gente esparsa no aeroporto, de famílias soltas pelo parque que contorna a Lagoa onde se comemorou o segundo aniversário do Governo Aluízio Alves e até dos membros deste próprio Governo, interessados em encontrar uma solução de continuidade para essa alfabetização em larga escala, realizada a toque de caixa pelos universitários que empregam o método Paulo Freire e, a longo prazo, pelas professoras leigas, por sua vez sujeitas a periódicos e intensos cursos de treinamento, planejados pelo Centro de Pesquisas Educacionais dirigido por Lia Campos, uma gaúcha que veio para cá passar um ano e já anda se aproximando do quinquênio.

“E depois; que virá depois?” – pensam não só aqueles que estão metidos na mais séria brincadeira dos últimos tempos, como também os que dela descreem ou a ela se opõem. A diferença é que os primeiros confiam em si próprios e no povo e se mostram absolutamente certos de que a solução cairá do céu, através da própria equipe do Paulo, cujas pesquisas continuam, pois melhor do que ninguém ela sabe que suas quarenta horas deverão ser prolongadas pela vida inteira para que seu método seja realmente válido ou através de outra forma, de incentivar o interesse cultural das comunidades rarefeitas do sertão, ao passo que os outros acrescentam à pergunta uma afirmativa de sentido duplo: “É um governo de loucos”…

Quanto a mim, que aqui estou enviada pelo permanentemente acusado de loucura lírica, Embaixador Paschoal Carlos Magno, Secretário Geraldo Conselho Nacional de Cultura, incumbida de missão não menos doida: incentivar, reformar, criar, formar, orientar e vários outros verbos, conforme o caso, o interesse e o grau de alfabetização dos inscritos nos cursos de emergência para atores, professores, etc., que posso dizer? Que posso dizer, eu que há cinco dias corro o Estado em todas as direções e em todas as conduções, acompanhando ora o governador e seu Secretário de Educação, para verificar a estupenda experiência de Angicos, ora a Diretora do Centro de Pesquisas, em sua periódica inspeção aos cursos de formação e aperfeiçoamento de professores leigos, encarregados das escolas isoladas ou de comunidades distantes, até onde não se atrevem a chegar as moças formadas e com possibilidades de ficarem pelas cidades?

Que posso dizer eu, que também pela produção agrícola me meti, acompanhando o Embaixador de Israel, o ministro Isaac Levy, um general israelense, um representante do nosso Ministério da Agricultura e o coronel Leão, Secretário da Agricultura do Rio Grande do Norte, até uma antiga fazenda abandonada (2.000 hectares de terra que, já sentiram florescer o algodão e hoje simbolizam a miséria e a seca), onde possivelmente venha a ser instalada a mais perfeita e extensa fazenda coletiva conhecida no mundo ocidental, nos moldes das que ajudaram a convencer o mundo de que para o povo de Israel não existe o impossível? Que poderei dizer eu, que andei e ainda ando distribuindo aulas relâmpago, com um mínimo de exemplos práticos de improvisação, jogos dramáticos e dramatizações a serviço da psicologia aplicada à pedagogia experimental, eu que ando improvisando a recreação didática, levada pelos ventos favoráveis à vontade de servir, procurando adaptar um método geral a cada caso particular? Que poderei dizer eu, investida pela própria doideira, sobre a loucura, deste Estado, que não é gigante, mas até agora, andava adormecido em comunhão com outros companheiros ainda por despertar? Que poderei dizer, senão que, a ser verdade o que se murmura e se grita sobre a “Aliança para o Progresso”, o Governo Aluízio Alves está sentado sobre uma bomba relógio? Qual a hora determinada para que a bomba estoure? Nem ele nem ninguém poderá responder a esta pergunta enquanto não responder à primeira, pois dela depende todo o futuro, não só do Rio Grande do Norte, como possivelmente do Nordeste, do Norte e mesmo do Brasil inteiro. O Governador e seus Secretários sabem que estão jogando uma cartada tão perigosa quanto aquela que levou Jânio Quadros à Presidência da República, mas Aluízio Alves, primeiro deve ter consciência de que se largar a cartada pelo meio, tal como Jânio, não será mais eleito nem mesmo prefeito de seu Município. Renúncias por aqui não haverá – e disto ninguém duvida – mas largar a cartada não é só renunciar, é sobretudo blefar. No pé em que estão as coisas, com Miguel Arraes cavalgando de rédea solta em seus calcanhares, com os cursos de alfabetização de adultos entregues a universitários vastamente politizados (nos mais diversos sentidos, mas conscientes da necessidade de um Brasil brasileiro), com um mundo de promessas feitas aos lavradores, aos operários, às professoras e às mães de família, tendo já começado a desencadear a onda de vibração por uma vida que mereça a pena ser vivida, o Governador do Rio Grande do Norte não poderá parar. E se o fizer, ficará estatelado no caminho, vendo seu Estado continuar no ritmo da marcha batida que aqui mesmo se levanta, porque “de pé no chão” ou de alpercatas, quando um povo começa a pensar, a ler, a trabalhar, conscientemente, ninguém o contém.

AluízioAlves começou a revolução branca, ou melhor, a revolução verde esperança, que é a sua cor, dele. Da vitória de seu programa depende que a esperança do povo não mude de cor, porque povo daltônico é o diabo. Sim, o Governo do Rio Grande do Norte só pode ser composto de doidos, doidos decididos a tirar o pino da bomba relógio para que ela não leve pelos ares todas as esperanças de um povo também doido, mas de fome, de miséria, de enfermidades, de ignorância e de inércia. E, se o pino não for retirado a tempo? Se houver “forças ocultas” que impeçam essa equipe de malucos de tentar provar que, mais uma vez, no Brasil, a História se repete melhorando as coisas sem armas, sem sangue e sem perda de jovens indispensáveis à construção, apenas com a compreensão de que o momento foi chegado de libertar isto ou aquilo, de evoluir neste ou naquele sentido? Se houver retrocesso da “Aliança”, que farão eles, os responsáveis pelo destino do Rio Grande do Norte? Bem, esta é outra história que só a História poderá contar, mas que me atreverei a prever em artigo a seguir.

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