Duddu Barreto Leite, matriarca rebelde II

(18/12/1933 em Bissoram, Guiné Bissau
24/04/2017 em Lorena, SP)
Duddu e Vera BL

Duddu, à direita, com Vera, à esquerda.

Diálogos com Duddu

Infância, venturas, desventuras e Luiza, a protetora

Luiz Alberto Sanz

LAS — Agora, vamos falar de Luiza Barreto Leite.

Duddu — A Luiza[1] é, na verdade, a minha segunda mãe. Teve momentos na vida em que foi a primeira. Quando eu vim pro Brasil, vim com um ano e meio, dois, aproximadamente. Mamãe pariu a Vera[2] e foi buscar o homem dela lá na África.

LAS — Na Guiné.

— Na Guiné Bissau que era onde ela tinha largado o homem dela. Só que ela demorou algum tempo pra voltar ou convencê-lo a vir com ela, isso eu não tenho muito claro na minha cabeça porque eu era uma menina de dois anos e pouco. A tia Luiza, na época, era mulher solteira, então eu era uma bonequinha mesmo, então ela e as sacanas das amigas dela me levavam pra praia porque todo mundo olhava praquela criança que era uma bonequinha e eu tinha mania de chamar todos os homens de mamãe, eu olhava pra cara do homem e chamava ele imediatamente de mamãe, isso levantava uma curiosidade e eu passava a ser o show da festa, eu nunca fui pouco exibida né!? Ao contrário, não sou uma pessoa muito recatada né?! E a tia Luiza dava corda na bonequinha dela. Isso fez com que criasse um vínculo de amizade, que quando o papai veio para o Brasil — que a mamãe consegue colocá-lo numa posição que tem emprego, o diabo a quatro — pouca coisa era séria e ele vai parar lá na Amazônia catando borracha.

Bom, muito bem, a Luiza fez da casa dela a minha segunda porta, ou seja, pra mim, minha rota de fuga era a porta da Luiza era lá que eu ia me esconder dos momentos mais absurdos, ou porque eu brincava que eu estava fugindo ou porque eu brincava que ia me suicidar e também nessas coisas todas eu tinha o lado Gonçalina[3], bem dramático, o ridículo foi a tal ponto que eu abria o gás do barreiro, punha a cabeça pra fora da janela, que eu não era besta e ficava gritando: “eu me mato, nessa casa eu não vivo mais”, e a mamãe batendo desesperadamente na porta: “minha filha pelo amor de Deus, sai daí de dentro”.

LAS — Você tinha que idade?

— Sete, oito. Eu ia pra frente do espelho — eu devia ter uns oito ano de idade, já tinha Os Comediantes[4], é fácil saber — eu ia pra frente do espelho e me matava, me matava assim e aí achava que não tinha ficado bom, aí me matava assado, pra encher o saco da minha mãe porque eu ia me matar na frente dela de uma maneira ou de outra, então eu fazia caras e bocas e me suicidava de diversas maneiras sempre cenicamente muito bem colocada, pra isso eu tive os professores que eu tive, que era Ziembinski, que era Labanca, que era Luiza Barreto Leite em primeiro lugar. Bom, então era muito fácil pra mim esse lado dramalhão gonçalinense , porque isso era claramente a Gonçalina. A Gonçalina não conseguia ir à nossa casa sem levar um frango assado e pelo menos meia dúzia de doces, a mamãe explicava pra ela que nós não estávamos passando fome, ela olhava com uma cara de desprezo como quem dissesse: você pensa que eu sou idiota? Voltava na vez seguinte e trazia o diabo do frango e trazia os tais dos doces pras crianças.

Então, Luíza. Vamos lá colocar a Luiza bem colocada nessa minha visão, (frisa) minha visão. Primeiro: Luiza era uma mulher solteira e livre e pra mim já era uma inspiração porque aquele negócio de obedecer ordem nunca fez muito bem a minha cabeça, nunca, nunca, de pequena querer que eu fizesse B era mandar eu fazer A, era batata, se quisesse que eu fizesse A e mandasse eu fazer B, dava certo, mas se quisesse que eu fizesse B não me mandava fazer porque eu não ia fazer. E a Luiza notou isso, a Luiza percebeu isso, então cada vez que eu ia me matar, que eu ia me suicidar ou que eu ia fugir pra todo o sempre e só voltar quando adulta, a Luiza me dava corda, ela me recebia na casa dela, deixava eu me esconder debaixo da cama quando a Maria ia procurar por mim na casa dela, porque a Maria já sabia de cara onde é que a desgraçada da Luiza Helena estava.

Blenblenblenblen!

Bom, eu vou crescendo, minha vida vai se embrulhando, se embrulhando principalmente com a má gestão da mamãe da própria vida. Naquele eterno internamento, pra uma pessoa libertária como eu fui desde menina, ser internada era o cão.

LAS — Então, conta essa história. Você foi internada a primeira vez com que idade?

— Sete anos.

LAS — E foi mandada pra fora do Rio, não foi?

— Não. A primeira vez, eu fico no Rio, fico num colégio batista. Não, antes do colégio batista, colégio, colégio…

LAS — Sacré Coeur de Marie?

— Não, pior que o Sacré Coeur…

LAS — Sion?

— Não, pior! Era o Regina Coeli[5], em que o nível de aprisionamento era tal que tinha um bondinho que só tinha subida. Não tinha dois, era um[6]. Então, pra você descer tinha que ter alguém chamando aqui embaixo. Então, quem subia ficava. Mas era: subiu ficou! Porque só descia chamado de baixo. Então você não podia entrar lá em cima e apertar em baixo e passar lá para baixo, não. As filhas da puta tinham lá o sistema delas qualquer que elas iam lá em baixo e o bondinho ficava lá em cima. Quando mamães, papais, titias, vovós iam visitar. elas chamavam o bondinho lá em baixo, punham titias, mamães, vovós, subiam desciam e punham outra vez o bondinho lá em baixo, então se qualquer uma de nós tentasse fugir nesse ínterim entre mamães, titias, vovós entrar e o bondinho voltar, não dava mais tempo porque o bondinho era chamado enquanto subia, então era o típico da caserna, não tem outra coisa para dizer porque você ia descer aquele morro, com é que você ia descer aquele morro? Tá lá até hoje, o Regina Coeli tá lá até hoje, com seu bondinho pra quem quiser ver, só que hoje tem outra estrutura.

LAS — Qual era o bairro, você lembra?

— Eu lembro, era Tijuca[7] cortado por trás.

LAS — Pelo morro.

— Eu acho que sim, porque na época aquilo não era um bairro habitado, isso que estou falando eu tinha mais ou menos seis ou sete anos.

LAS — Começo dos anos 40.

— Exatamente, começo dos anos 40. Mamãe acha o colégio tão bom, tão bom, tão bom, tão bom que dois anos depois ou um ano depois põe a Vera lá, e por mais que eu falasse, ninguém me levava a sério mesmo, eu era uma rebelde, então a coisa era a seguinte, a gente acordava com a porra de uma campainha (blenblenblenblen), levantávamos da cama (blenblenblenblen), arrumávamos a cama (blenblenblenblen), e ai de você se não fizer a determinação do (blenblenblenblen), aí tadinhas de nós, saímos ainda vestidinhas de camisola pra frente da nossa bancada higiênica e eles tocavam (blenblenblenblen) pra gente começar a escovar dentes, lavar a cara… e (blenblenblenblen) pra gente parar, aí nós íamos para o dormitório de volta e nos vestíamos entre um (blenblenblenblen) e outro (blenblenblenblen), eu que era espertinha, macaca velha, não era meu primeiro internato, eu ficava pronta

LAS — Não era o primeiro internato, no Regina Coeli?

Duddu aos treze anos, com Maria Barreto e Leite e uma amiga

Duddu aos treze anos, com Maria Barreto Leite e uma amiga

— Era, era o primeiro só que não era o primeiro ano que eu estava internada, então eu já era macaca velha, então eu rapidamente metia minhas calcinhas, ah, e tudo isso tinha pecado então você não podia ficar peladona e depois vestidona, você tinha que tirar a blusa, tirar a camisola sem descobrir o peito, vestia a blusinha por dentro da camisola, então era uma peripécia sem senso e a Vera que sempre foi meio lerdinha, não conseguia entre um (blenblenblenblen) fazer aquela porralhada toda, então o que quê eu fazia? Eu me vestia rapidamente e corria pra Vera, pra conseguir fazer com que a Vera fizesse as tarefas dela entre um (blenblenblenblen) e outro (blenblenblenblen), até que chegava na porra do refeitório. Eu não sei se você lembra, a Vera. Não, você não lembra, você nem tinha nascido ainda. A Vera comia assim: Vera, abre a boca, Vera, fecha a boca, Vera, mastiga, Vera, engole, Vera, bebe água, Vera, abre a boca, Vera, mastiga, Vera, bebe água. Era assim que a mamãe educou ela pra comer, aí ela chegou no Regina Coeli, que era (blenblenblenblen) começa e (blenblenblenblen) acaba e (blenblenblenblen) se você não comesse o prato todo, então o quê que a Dudduzinha fazia? Comia correndo com duas mãos, uma no prato da Vera e uma no prato dela, então era uma garfada de lá e uma garfada de cá, uma garfada de lá e uma garfada de cá, mastigando com a boca cheia pra Vera dar tempo, mas não deu. Tomar banho era o seguinte, Deus estava em todo lugar, era omnipresente, oniciente, oni o cacete. Bom, muito bem, se ele é tão omni, porque que eu não podia tirar a roupa? Ele me via por debaixo da roupa, mas não, eu tinha que vestir meu vestidinho de banho e tomar banho, lógico que a Vera não conseguia fazer isso e eu não podia entrar no banheiro da Vera, então a Vera foi acumulando sujeira até que um dia a mamãe veio nos ver, e a mamãe também era “assídua”, aquelas coisas da mamãe, “assídua”, era pra vir no domingo que vem, dois domingos depois ela aparecia. Quando a mamãe passou a unha na orelha da Vera, saiu um cascão que dava pra tampar um buraco de chave, e ela foi olhar a Vera, a Vera estava encardida, imunda e na beira de ser subnutrida, porque não comia quem comia a comida dela era eu, aí a mamãe tira nós duas do tal desse colégio. Até ali, nós não somos expulsas não, não houve falta de pagamento, nada, tudo certinho, tudo bonitinho. O segundo colégio, já não puseram a Vera interna comigo, porque já iam ver que ia dar besteira e eu não ia conseguir, resolveram me pôr num colégio mais democrata, eu fui pra um colégio chamado Santa Catarina ou Santa qualquer coisa que é em…

LAS — Em Minas.

— Não, lá em cima, Rio de Janeiro, Petrópolis. Em Petrópolis eu era absolutamente liberal, fora de todas as normas, já existia Os comediantes já existia toda essa coisa, e nas férias a minha mãe me levava, eu era tão “comportadinha” que a Mãe Maria[8] não queria ficar comigo, a Luiza tinha que ir pros Comediantes ensaiar. Maria ia junto e a Duddu ia junto, lógico, então, nessa época ela me põe num colégio mais liberal, um colégio chamado Santa qualquer coisa em Belo Horizonte, ai eu já tomava ônibus sozinha pra ir pro Rio de Janeiro, já tomava ônibus sozinha.

LAS — Você já era adolescente?

— Não, eu era uma menina ainda, tinha onze anos.

LAS — Onze anos é em quarenta e cinco (1945).

— Eu era uma menina, só que eu não era tratada como menina, era tratada como a mais velha, então eu ia ali na esquina pra comprar pão, a vozinha vinha lá dentro da sala: Duddu, leva as crianças, e lá saía eu; Vera retardada de um lado, Sandra, um pouquinho menos retardada, o Sergio, insubordinado, não queria obedecer àquela menina de jeito nenhum, você, que era a ternura em pessoa, que era meu predileto e tava na cara, e a Mávia[9] que eu ainda carregava. A Mávia! Então eu sempre carreguei um bando de crianças atrás de mim, sempre.

LAS — A Mávia, vocês se conheceram no…

— Eu pra falar a verdade…

LAS — A Maria Mattos, conheceu no teatro, não é? Ou antes, na turma…

— Eu pra falar a verdade, eu não lembro da minha vida sem a Maria Mattos, a minha vida toda, o que eu tenho de memória da minha vida, a não ser a muito íntima ou o fato do papai ter me levado pra Amazônia , ter me posto num colégio que era o único, coitado, mas era um asilo de menores abandonados, mamãe foi indignada, como é que a filhinha dela ia pra um asilo de crianças abandonadas. Bom, mas era o único colégio que tinha.

Soldado da borracha e filha

LAS — Você foi pra Amazônia com ele?

— Fui, Mato Grosso.

LAS — Mato Grosso.

— É, onde ele cumpria trabalho escravo. Mamãe é que vai lá, põe e faca na cinta, e vai lá e tira o homem dela, porque ele tinha entrado naquele negócio de débito, trabalho escravo.

LAS — Ele trabalhava em quê?

— Na parte de extração de borracha, na época da borracha, os soldados da borracha, não sei quanto da borracha, ele era um dos engenheiros, engenheiros esses que nunca se soube muito bem como ele se formou nessa engenharia, eu sei que num determinado momento devem ter precisado de um engenheiro, a mamãe com aquela imaginação dela e aquela capacidade única que ela tinha que a Luiza nunca teve que era de se infiltrar, a mamãe arranja o título, quem sabe como, de engenheiro pro papai e põe o papai trançando borracha, só que o papai vai se envolvendo também como bom imigrante, vai se envolvendo com a ideia de fazer a América e vai tentando ficar rico com aquele bando daquela gente de gangster formados, ele acabou mesmo foi no trabalho escravo, técnico, mas escravo.

LAS — Mas aí você era bem pequena?

— Eu tinha… Já não era tão pequena, porque a Vera já ia pro colégio sozinha.

LAS — Sim, mais foi antes de você ir pro Regina Coeli?

— Não, foi depois. Quando eles se separam, já estou com seis anos.

LAS — Sim, você disse que foi pro Regina Coeli com sete anos.

— Não, eu devo ter ido com cinco.

LAS — Colégio interno com cinco anos?

— É, colégio interno com cinco anos. Eu devia ter cinco anos.

LAS — O pessoal morava naquela pensão em Copacabana?

— Não, ainda não moravam na pensão.

LAS — Na Tijuca.

— Exatamente, estávamos todos hospedados no apartamento, na época dito como da Gonçalina. A Gonçalina era a matriarca e antes desse apartamento na Tijuca, que é inclusive um apartamento belíssimo, é quando a Mãe Maria entra na nossa vida.

Mãe Maria, Luiza e Gonçalina

LAS — Então isso é 1942.

— É quando mãe Maria entra na nossa vida, porque a mãe Maria vai pra lá pro teu nascimento.

LAS — Que é em 1943.

— É.

LAS — Mas ela já trabalhava há um ano quando eu nasci.

— Trabalhava um ano nada, ela chegou lá, a Luiza estava grávida, ela é contratada porque a Luiza está grávida.

LAS — Ela que dizia isso, que já trabalhava há um ano lá.

— É porque ela contava mal contado o tempo porque a Luiza vai pra esse apartamento, a Luiza topa meter num apartamento Sanz[10], Gonçalina, Maria Barreto Leite, tudo num canto só, é porque ela tá muito necessitada de tomarem conta dela, até aquele instante, a vovó que era uma ótima dona de casa, uma excelente cozinheira, uma artesã sem tamanho, então de um jeito ou de outro sem cair num fato de ser uma obreira, mantendo-se uma Lady que foi o que ela manteve ate morrer, ela ainda tinha dinheiro, porque ela foi perdendo dinheiro no jogo.

No meio desse charivari[11], Luiza fica grávida de você, e quando ela fica grávida de você a Gonçalina tinha como hábito colocar todas as empregadas que a tia Luiza contratasse pra rua e a tia Luiza não sabia fritar um ovo. Uma vez, ela resolveu fazer um refogadinho muito saudável pras crianças, pegou uma bonita peça de alface e simplesmente refogou-a. Aquela merda ficou amarga, horrível; quando acendia o fogo pra fritar o ovo, ela se colocava a meio metro do fogão, punha aquela porra daquela gordura a mil e jogava o ovo daqui pra lá. Se caísse dentro, caía, se caísse fora, caía, ficava por conta e ela misturava com arroz e nós achávamos uma delícia. Até o dia do refogado, aí nós protestamos, porque aí a brincadeira já tinha ido longe demais.

A tia Luiza teve uma conversa séria com a vovó e disse pra vovó: “se você puser mais uma das minhas empregadas na rua eu saio de casa”. Se a Luiza dizia, eu saio de casa, resumia-se em dizer duas coisas, primeiro: “vocês vão pegar dinheiro na puta que os pariu”, porque o dinheiro vinha dela. Segundo: “eu saio com a maioria do patrimônio dessa casa”, porque a cortina era dela, o sofá era dela, a cama era dela, tudo era dela, então, quando a Luiza dizia, eu saio, todo mundo mão pro alto, porque ali o perigo estava armado.

Então, essa é a Luiza da minha primeiríssima infância, é aquela pessoa que me defende, é aquela pessoa que deixa eu me esconder debaixo da cama, porque a Gonçalina punha fogo na fogueira, ela punha gasolina na fogueira, quando o António Valdez entrava porta a dentro metendo a mão na cara de quem estivesse pela frente e a mamãe muito maluca revidava, então virava uma tragédia, todo mundo gritava e isso eu tinha seis anos. Quando eles se separaram eu tinha seis pra sete anos, então esse negócio da Amazônia eles já estão separados porque ele vivia reclamando de que se ela não fizesse isso ele tirava as crianças dela, se ela não fizesse aquilo ele tirava as crianças dela. Um dia — a mamãe tinha como característica, entre outras coisas, encher o saco e quando ela enchia o saco, saísse de perto porque ela vinha que nem um trator — a um determinado momento, ela exatamente encheu o saco, no que o papai disse: “porque eu levo as crianças”, ela disse: “já levou, pode deixar, espera aí, pode ficar parado aí, sentado”. Pegou minhas coisinhas, meteu tudo numa mala e me mandou com ele e ele, que não queria absolutamente aquela criança, ele tava lá se saindo muito bem na tal ascensão na carreira de escravo, teve que carregar, porque tinha dito: “eu levo as crianças, eu levo as crianças, eu levo as crianças”, ela deu as crianças.

LAS — Mas só levou você?

— Só a mim, sempre era comigo, a coisa era sempre comigo. A Vera, o apelido da Vera era peruzinho, porque chamava peruzinho? Porque os peruzinhos, ao contrário de galinha, pato, esses negócios, que saem à caça, o peru não, o bebê peru fica em volta da perua e não sai à caça, a minhoca pode estar aqui nos cornos do peruzinho, a perua tem que tirar a minhoca, meter na boca do desgraçado pra ele comer. Então, o apelido da Vera era peruzinho exatamente por isso, porque ela se agarrava na saia da mamãe e ficava. E pronto!

A moleca e seu fiel amigo Lobo

Mais tarde, nós já grandotas, eu resolvi meter a mão, até ali eu era uma menina rebelde mas não era agressiva e, aí sim, nós já estamos morando no edifício Andraws[12], era do lado da pensão em que a gente morava, logicamente, bancado pela dona Luiza. A Sandra tem o primeiro ataque epilético dela, ela tem nessa pensão. E o Lobo, o tal cachorro que fazia dupla comigo, que é quando eu começo a dar porrada, começo a dar porrada porque eu tenho ele como guardião das minhas porradas, ele era cachorro treinado, eu achei ele debaixo de um carro, fui chamando, ele foi vindo e fizemos uma amizade, amizade essa que um dia a mamãe foi me dar uma surra e deixou a janela aberta, no que ela deu a primeira porrada e eu fiz ‘ai’, esse cachorro pulou pra dentro da janela se pôs entre eu e ela e ia avançar se as pessoas não fossem lá tirar o couro dela da boca do cachorro, é aí eu vi que aquele cachorro me daria proteção contra qualquer coisa. Ninguém mais tocou em mim, ninguém mais me bateu, ninguém mais fez nada dessas coisas porque eu metia a mão mesmo e nunca se aproximavam pra resolver, dar de volta o murro que eu tinha acabado de dar, o lobo se colocava do lado e rugia. Você já viu cachorro capa preta quando ele ruge? Ele tem a gengiva toda preta, a gengiva fica toda preta quando ele tá com raiva. Então, ele rugia e pronto, Maria da Gloria! O capa preta na época era o cachorro do exército, eram os pit bulls de hoje.

LAS — É. Chamavam de cão policial.

— Isso mesmo. Exatamente. Então, eu com o Lobo nas costas, minha filha, nem a mamãe me batia mais e se fosse bater fechasse tudo bem fechado, porque se não ele entrava e atacava, ele não respeitava ninguém. A única voz de comando que ele aceitava era a minha, mais ninguém. Bom, aí eu fiquei a rainha da cocada preta, porque era tudo que eu precisava, era um protetor maior que a Luiza.

A grande piada da época: a Luiza tava nessa pensão e os meninos conseguiram cercar uma árvore em que eu subi e cachorro não sobe em arvore, né? Então, eu andava pra lá o cachorro, ia pra lá, mas enquanto eu andava pra lá, a garotada subia na árvore do lado de cá, quando eu andava pra cá, o cachorro vinha pra cá, aí eu gritei pra uma mulher que tava na janela: “minha senhora, eu tenho minha tia que mora no telefone tal e tal, liga pra ela e diz pra ela vir salvar minha vida!”. A tia Luiza, não passou nem dez minutos, já tava lá: “sai daí garotada”, acho que a mãe Maria também já tava: “vão, vão, vão, todo mundo andando!” Eu  desci com o cachorro na mão e fui diretinho pra casa.

Então essa foi a grande piada. A outra grande piada da tia Luiza: quando eu fui parida a coitadinha da mamãe com apenas dezoito anos de idade, numa tribo em que não havia crianças brancas, existiam adultos brancos, se duvidar eram o papai, a mamãe e mais uns dois casais brancos, criança branca mesmo não existia. Quando eu nasci teve duas coisas, a primeira é a mamãe que pariu nessa tribo sem nenhuma condição de assepsia e na hora em que eu nasci, o médico teve uma convulsão de sífilis e enlouqueceu, só voltou dois dias depois. Mamãe toda… Nem posso imaginar, não posso descrever a mamãe dois dias em um lugar sem assepsia e esse cara consegue então salvar a minha vida e a vida da mamãe fazendo lá as coisas dele, porque ele também era negro, era um médico negro, e nessa época a tia Luiza dizia assim: “o primeiro homem que a Duddu enlouqueceu foi na data do seu nascimento”, outra piadinha da Luiza.

Essa tribo não conhecia criança branca e o adulto branco na África por mais que se proteja com aqueles chapelões e o diabo a quatro adquire uma cor mais escura porque é impossível não adquirir uma cor mais escura, mas o feto recém-nascido devia ser uma coisa nojenta pra eles né? Aí, eles olhavam pra mim e diziam: “Dudu, Dudu”. A mamãe que foi sempre pretensiosa achou que eles estavam dizendo que eu era tão linda quanto leite e aí me pôs o apelido de Duddu porque eu era branquinha como leite. Não é nada disso, o que eles diziam era o seguinte: quando o café negro cai sobre o leite branco é dudu, quando o dia está acabando e a noite vai tomar conta do dia é dudu. Então o que eles estavam dizendo era o seguinte: “essa pobre dessa lesma vai ter uma corzinha, não vai? Então dudu queria dizer que vai adquirir uma corzinha, não vai ficar essa lesma pro resto da vida. E aí, quando eu soube o real valor da palavra dudu, assumi pra mim, ajudada muito pela Cacilda Becker, o codinome de Duddu.

Bom, vou crescendo, vou crescendo e chego à adolescência , chego à adolescência bem antes das outras crianças, pra falar a verdade eu faço tudo bem antes que as outras crianças, em todos os níveis, a única coisa que eu não fiz na frente das outras crianças foi estudar, porque como eu era disléxica e eles não tinham o conhecimento da dislexia e eu era o demônio mesmo, cada vez que eu cometia um erro, porque o quê eu fazia, pra poder pegar a leitura que era uma das matérias importantes no primário, era pela orelhada, eu ouvia e tentava reproduzir pra na hora que eu ler não cometer tantos erros, só que eu ia assim, o texto por exemplo estava dizendo: “Antônio foi à feira e comprou quatro tomates, entre os tomates, tinha um podre”. A Duddu lia: “Antônio foi à feira com os tomates e entre os tomates dois estavam podres”. Bom, primeiro que Antonio não foi à feira com os tomates, mas era o que eu tinha guardado na audição, aí a sala rachava de rir e todo mundo chegava à brilhante conclusão de que eu tinha feito aquilo de propósito. Como se dislexia não fosse pouco, eu tinha dificuldade, porque quando eu chego no Brasil eu falo português de Portugal ou melhor, nem de Portugal, eu falo um dialeto de português da Guiné Bissau.

— Crioulo.

— É. Então, eu levo isso o resto da minha vida, eu não falo igual às outras pessoas desde menina, eu tinha algumas referências vamos dizer, que eram referencias da primeira infância que no primeiro momento quando eu vivi com a tia Luiza, aquilo era uma gracinha, mas que, depois, passou a ser uma coisa incômoda. Aí, a tia Luiza dizia que eu era uma pessoa muito inteligente, muito competente e muito intelectual, mas era a única intelectual analfabeta que ela conhecia.

[1] Luiza Barreto Leite, tia materna de Duddu, atriz, educadora e jornalista.

[2] Vera Barreto Valdez, conhecida no Teatro como Vera Barreto Leite e, no mundo da moda, como Vera Valdez, irmã caçula de Duddu.

[3] Nossa avó materna, Gonçalina Azevedo Barreto Leite. Uma Grande Senhora da Aristocracia falida dos Pampas e figura notável, “gaúcha de faca na bota”, difícil de enfrentar.

[4] Os Comediantes, grupo renovador do Teatro Brasileiro, fundado em 1938 por Luiza, Brutus Pedreira e Santa Rosa, de cujo elenco, Maria Barreto Lei, a mãe de Duddu, fazia parte.

[5] Colégio fundado em 1908 pela criadora da Ordem das Irmãs Missionárias do Sagrado Coração de Jesus, a italiana Madre Francisca Xavier Cabrini. Hoje não funciona mais como colégio, mas mantém um centro de Retiro e Eventos ainda mantido pelas Irmãs Missionárias.

[6] Agora, são dois bondinhos em duas linhas no plano inclinado.

[7] Situado na Usina da Tijuca, na Avenida Conde de Bonfim, que corta a parte mais alta do bairro, rumo ao Alto da Boa Vista.

[8] Ver “Maria Augusta, mãe de todos nós”: http://redesina.com.br/maria-augusta-mae-de-todos-nos/?bclid=IwAR0nlYlHv0fhGRkXK1tN2TwdPaI7LtMfcXtuRQAQS5Zx7dhyzY8UuEDbLQ8

[9] Mávia Zettel, filha da atriz e radialista Maria Mattos, prima afetiva de todos nós, até hoje. Mãe da atriz Ana Zettel e do cineasta e diretor de TV Ivan Zettel.

[10] Durante a terceira gravidez e até o meu nascimento, Sanz estava em Belo Horizonte, para tratar-se de um problema nos pulmões, por isso os amigos mais próximos de Luiza, João Ângelo Labanca e Paschoal Carlos Magno, presentes no Hospital Espanhol durante o parto, alegavam ser os meus verdadeiros pais. E me trataram como filho por toda a vida.

[11] Substantivo feminino francês: Confusão.

[12] Na Avenida Copacabana, prédio recuado no fundo da arborizada Praça Sara Kubistchek. Provavelmente o lugar em que Duddu passou a aventura que relata a seguir..

Bom Retiro, meu amor

Flavia Sztutman (de costas), Danila Gonçalves, Angelita Alves, Mei Hua Soares e Ana Elisa Moro, em uma das cenas mais fortes e belas da ópera: As mulheres da Vida.

A ópera da diversidade

Luiz Alberto Sanz
Fotos: Graciela Rodriguez

O novo espetáculo do Teatro Popular União e Olho Vivo é, de todo o seu repertório, o mais identificado com a concepção brechtiana de um teatro épico, não aristotélico. As façanhas e desventuras de seus personagens e das gentes que simbolizam são relatadas pelos atores e avivadas por primorosos figurinos, adereços, objetos de cena, música, direção e interpretações. Um mosaico no qual interagem os 53 anos da História construída pelo grupo, a experiência de profissionais que a ele somaram sua técnica e uma nova geração de intérpretes, muitos enfrentando o público pela primeira vez neste domingo 16. Não-aristotélico, contemporâneo e bem brasileiro.

Epopeia dos desvalidos

À medida que conta a história de Neriney Moreira e do TUOV, o espetáculo descortina a vida dos migrantes que contribuíram para tornar o bairro e a capital paulistana referências cosmopolitas, onde se enraizaram e enraízam trabalhadores, artistas, educadores e esportistas, das mais diferentes origens, e de seus descendentes. A marca cosmopolita está expressa em cena, mas também na composição do elenco, sem ter sido intencional. Basta ler a ficha técnica para encontrar nomes e sobrenomes eslavos, judaicos, italianos, grego, castelhanos e aqueles adotados pela imensidão de escravos trazidos para dar conforto e fazer o trabalho sujo e pesado para os primeiros colonizadores, fugidos da pobreza em Portugal e tornados senhores na terra brasilis.
A cruel exploração da mão de obra começou com a captura, servidão e, finalmente, dizimação dos orgulhosos e resilientes tupis e guaranis, seus habitantes originais, lembrada cirurgicamente pelo Saci, boneco que se torna um dos protagonistas, continuou e continua com os africanos, imigrantes forçados, judeus, turcos, árabes, bolivianos, italianos, coreanos, refugiados econômicos e políticos que vieram “fazer a América”, aqui descobriram que a vida não era tão acolhedora quanto esperavam. Mas esta epopeia é contada e cantada à brasileira, com canções e palavras fortes e belas, que nos fazem pensar e refletir. O público das duas sessões de domingo (teatro à “antiga”, atores estreantes enfrentando duas sessões “de cara”) evidenciava estar refletindo sobre o que se passava na “passarela” da rua Newton Prado 766. Compenetrado, aplaudiu algumas vezes em cena aberta e foi até o final pendente do que lhe diziam as vozes, os olhares, a expressão corporal, as peças de vestuário e adereços, os instrumentos musicais, a iluminação, o cenário minimalista, os objetos de cena variados e de um refinamento notáveis, em contraste e, ao mesmo tempo, dialogando com o velho galpão em que “mora” o TUOV. Fechado o portão, na escuridão do final, explodiu em aplausos. Não foram submetidos à catarse aristotélica, mas levantaram-se para aplaudir de pé o chamado para retomar a vida e agir para mudá-la.

Mosaico da Liberdade

A linha condutora da dramaturgia do TUOV é contar e fazer refletir sobre as lutas de nosso povo pela Liberdade. É uma linha que, pelo caminho, foi adotando métodos libertários e avançou no processo de criação coletiva, presenteando-nos com este espetáculo pesquisado no bairro, nos livros, em documentos e entrevistando quem pudesse contribuir para formar tal mosaico, pois como diz o narrador, “tempo não é dinheiro, é o tecido de nossas vidas”, criado e costurado em cena, ensaio por ensaio, para só virar texto quando amadurecido como pedras que ferem a boca e só se tornam palavras quando definitivamente ditas.
O filósofo Ued Maluf, meu colega e mestre, na sua Teoria das Estranhezas, formulou o conceito de “mosaico de isomorfos”, muito próximo às teorias de Proudhon, que, simplificando, estabelece que um mosaico de isomorfos apreciado no seu conjunto é uma “unidade diferenciada de alta complexidade”, mas os isomorfos, que se modificam na mútua interação, não perdem sua individualidade e podem ser apreciados como os fragmentos que são. “Bom Retiro, meu amor” é um perfeito exemplo de um mosaico de isomorfos. Seus fragmentos interagem e formam uma unidade complexa, mas podem ser recombinados sem que o conjunto se perca. O que eu quero dizer?
Quase todas as cenas podem ser mudadas de lugar, sem que a coerência da história se perca, os atores, se necessário podem dizer as falas de outros, acrescentando um elemento novo, uma “quebra dramática” à narrativa. E o elenco não é homogêneo, não sofre dessa doença que infecta as artes e a vida, a pasteurização. Eles são um coletivo, criam em conjunto, mas mantêm sua individualidade: olham em nossos olhos com olhares pessoais e intransferíveis; fazem suas coreografias e movem-se, mesmo em grupo, com seus toques próprios, revelando, no “subtexto” o notável trabalho de Marilda Alface, a preparadora corporal. É um teatro coletivo feito por indivíduos, em um grupo teatral autogestionário.
A pergunta de uma imigrante, logo ao começo, “Quem é dono aqui” não tem resposta possível e este espetáculo mostra isto. Provavelmente, não seria o que Cesar Vieira teria escrito só, mas é o que grupo pôs em cena, como queria pôr e que ele aclamou. Ali, naquele galpão, encenado como Teatro de Cortejo, está o passado do União e Olho Vivo e do Bom Retiro, mas está também seu presente e seu futuro, nos corpos e nos sentimentos dos jovens que se somaram aos veteranos em busca de uma nova vida.

 
Ficha Técnica
Coordenação Geral: César Vieira (Idibal Pivetta), Graciela Rodriguez e Neriney Moreira/Direção Teatral e Dramaturgia: César Vieira (Idibal Pivetta)/Codireção Teatral: Rogerio Tarifa/Comissão de Dramaturgia: Mei Hua Soares, Rogerio Guarapiran/Coordenação Artística, Cenografia e Figurino: Graciela Rodriguez/Direção Musical: Rogerio Guarapiran/Coordenação Musical: Cesinha Pivetta, Rogerio Guarapiran/Elenco: Ana Elisa, Angelita Alves, Babi Pacini, Danila Gonçalves, Dante Kanenas, Edson Rocha, Flávia Sztutman, Juma Tanaka, Leandro Soussa, Lívia Loureiro, Lucas Cruz, Mei Hua Soares, Neriney Moreira, Oswaldo Ribeiro, Pedro Fraga, Rogerio Guarapiran/Músicos: Babi Pacini, Oswaldo Ribeiro, Pedro Fraga, Rogerio Guarapiran/Preparação corporal: Marilda Alface/Iluminação: Gil Teixeira/Assistência de Cenografia e Figurino: Lívia Loureiro/Ajudantes de Cenografia e Figurino: Juma Tanaka, Edson Rocha/Treinamento de Atuação: Luís Mármora/Treinamento Vocal: Ester Freire/Colaboração na Pesquisa: Walter Quaglia e Luiz Alberto Sanz/Direção de Produção: Maria Tereza Urias/Produção: Natasha Karasek/Assistência de Produção: Renê Costanny/Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini/Registro Fotográfico: Graciela Rodriguez/Registro Audiovisual: Nana Ribeiro, Pedro Cortese/Design Gráfico: Julia Pinto
Temporada 12 a 20 de janeiro de 2019 – Sextas às 21h
Sábados e Domingos às 16h30 e 20h/Classificação: Livre – Ingressos: Gratuitos/Onde: Teatro Popular União e Olho Vivo
Rua Newton Prado, 766, Bom Retiro – São Paulo-SP Informações: (011) 33311001 / teatropopularuniaoeolhovivo@gmail.com http://www.facebook.com/tuovivo
Dante Kanenas introduz os imigrantes, enquanto Luka Krsux,
Angelita Alves, Edson Rocha, Flávia Gonçalves e
Ana Elisa Moro se adereçam para a vida no Bom Retiro.

22 anos sem Luiza Barreto Leite – 3

(☼01/10/1909, em Santa Maria, RS, † 01/12/1996 no Rio de Janeiro, RJ)

DIÁRIO DE VIAGEM

Isto é revolução?

Luiza em Natal, em fevereiro de 1963. Registro feito pelo fotógrafo oficial do Palácio da Esperança.

Luiza era um excelente jornalista. Em 1963, viajou ao Rio Grande do Norte “enviada pelo permanentemente acusado de loucura lírica, Embaixador Paschoal Carlos Magno, Secretário Geral do Conselho Nacional de Cultura, incumbida de missão não menos doida: incentivar, reformar, criar, formar, orientar e vários outros verbos, conforme o caso, o interesse e o grau de alfabetização dos inscritos nos cursos de emergência para atores, professores, etc”. Cumpriu sua tarefa e combinou-a com as de repórter, escrevendo sobre o que acontecia em terras potiguares e publicando fatos, análises e opiniões desconhecidos para os leitores do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, como para a maior parte dos brasileiros. Este primeiro artigo foi publicado à página 05 do 3º caderno (Suplemento Dominical), no dia 17 de fevereiro de 1963.

O Brasil era, então, governado pelo Presidente João Goulart, que iniciara, assim como o Governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar, reformas classificadas de “Revolução Vermelha” por seus adversários. Os progressistas do PSD (Partido de Juscelino Kubistchek), apoiando-se no projeto de iniciativa ianque “Aliança Para o Progresso”, lançou programas sociais que se confundiam, em muitos aspectos, com os desenvolvidos pelos trabalhistas de Jango e os socialistas de Arraes, para fazer-lhes frente. Luiza relata neste e em outros artigos a “Revolução Branca” iniciada pelo Governador Aluízio Alves. Pouco mais de um ano depois, as reformas “vermelhas” de Jango e Arraes e “brancas” de Aluízio Alves foram interrompidas e destruídas pelo Golpe Militar. Mas o potiguar não perdeu o mandato, enquanto Jango teve que ir para o exílio e Arraes foi preso e depois exilado. Com a palavra Luiza:

Natal, fevereiro — Foi o próprio Calazans quem disse:

— Fazer revolução não é pegar em armas e derrubar governo, fazer revolução é educar, plantar, criar condições para o povo evoluir, estudar, trabalhar e adquirir consciência. É isto que o governo Aluízio Alves está fazendo, uma revolução de cima para baixo. E é por isto que andam dizendo por aí que Aluízio pegou o dinheiro da “Aliança” para com ele fazer a revolução. Não importa o que digam, importa apenas o que estamos fazendo. Os americanos deram dinheiro para a Educação e nós estamos educando. Está ou não está certo?

Sim, quem disse isso foi aquele mesmo Calazans Fernandes; excelente repórter internacional, tão conhecido no Rio por suas aventuras mais ou menos malucas, por sua audácia desmedida, por sua imaginação mirabolante, que, desta vez, sumiu de nosso ramerrão carioca, não para correr terras desconhecidas e distantes, mas para voltar à sua própria, assumindo a responsabilidade, ao ocupar a Secretaria Educação, não só de alfabetizar, mas de educar para a vida, ensinando-o a raciocinar, todo o povo do Rio Grande do Norte. Mas a tarefa não é apenas educar e sim educar a jato. Alfabetizar em quarenta horas e ir ao mesmo tempo, através do admirável método do professor pernambucano Paulo Freire,  sobre o qual falarei a seguir, parece impossível para quem não viu o que vi em Angicos, mas para quem teve oportunidadede observar o milagre, só uma pergunta ocorre: “E depois, o que virá depois?”.

Pois é justamente esta a pergunta que anda de boca em boca na cidade de Natal. Eu a ouvi de um motorista de táxi, de estudantes, de jornalistas, de gente esparsa no aeroporto, de famílias soltas pelo parque que contorna a Lagoa onde se comemorou o segundo aniversário do Governo Aluízio Alves e até dos membros deste próprio Governo, interessados em encontrar uma solução de continuidade para essa alfabetização em larga escala, realizada a toque de caixa pelos universitários que empregam o método Paulo Freire e, a longo prazo, pelas professoras leigas, por sua vez sujeitas a periódicos e intensos cursos de treinamento, planejados pelo Centro de Pesquisas Educacionais dirigido por Lia Campos, uma gaúcha que veio para cá passar um ano e já anda se aproximando do quinquênio.

“E depois; que virá depois?” – pensam não só aqueles que estão metidos na mais séria brincadeira dos últimos tempos, como também os que dela descreem ou a ela se opõem. A diferença é que os primeiros confiam em si próprios e no povo e se mostram absolutamente certos de que a solução cairá do céu, através da própria equipe do Paulo, cujas pesquisas continuam, pois melhor do que ninguém ela sabe que suas quarenta horas deverão ser prolongadas pela vida inteira para que seu método seja realmente válido ou através de outra forma, de incentivar o interesse cultural das comunidades rarefeitas do sertão, ao passo que os outros acrescentam à pergunta uma afirmativa de sentido duplo: “É um governo de loucos”…

Quanto a mim, que aqui estou enviada pelo permanentemente acusado de loucura lírica, Embaixador Paschoal Carlos Magno, Secretário Geraldo Conselho Nacional de Cultura, incumbida de missão não menos doida: incentivar, reformar, criar, formar, orientar e vários outros verbos, conforme o caso, o interesse e o grau de alfabetização dos inscritos nos cursos de emergência para atores, professores, etc., que posso dizer? Que posso dizer, eu que há cinco dias corro o Estado em todas as direções e em todas as conduções, acompanhando ora o governador e seu Secretário de Educação, para verificar a estupenda experiência de Angicos, ora a Diretora do Centro de Pesquisas, em sua periódica inspeção aos cursos de formação e aperfeiçoamento de professores leigos, encarregados das escolas isoladas ou de comunidades distantes, até onde não se atrevem a chegar as moças formadas e com possibilidades de ficarem pelas cidades?

Que posso dizer eu, que também pela produção agrícola me meti, acompanhando o Embaixador de Israel, o ministro Isaac Levy, um general israelense, um representante do nosso Ministério da Agricultura e o coronel Leão, Secretário da Agricultura do Rio Grande do Norte, até uma antiga fazenda abandonada (2.000 hectares de terra que, já sentiram florescer o algodão e hoje simbolizam a miséria e a seca), onde possivelmente venha a ser instalada a mais perfeita e extensa fazenda coletiva conhecida no mundo ocidental, nos moldes das que ajudaram a convencer o mundo de que para o povo de Israel não existe o impossível? Que poderei dizer eu, que andei e ainda ando distribuindo aulas relâmpago, com um mínimo de exemplos práticos de improvisação, jogos dramáticos e dramatizações a serviço da psicologia aplicada à pedagogia experimental, eu que ando improvisando a recreação didática, levada pelos ventos favoráveis à vontade de servir, procurando adaptar um método geral a cada caso particular? Que poderei dizer eu, investida pela própria doideira, sobre a loucura, deste Estado, que não é gigante, mas até agora, andava adormecido em comunhão com outros companheiros ainda por despertar? Que poderei dizer, senão que, a ser verdade o que se murmura e se grita sobre a “Aliança para o Progresso”, o Governo Aluízio Alves está sentado sobre uma bomba relógio? Qual a hora determinada para que a bomba estoure? Nem ele nem ninguém poderá responder a esta pergunta enquanto não responder à primeira, pois dela depende todo o futuro, não só do Rio Grande do Norte, como possivelmente do Nordeste, do Norte e mesmo do Brasil inteiro. O Governador e seus Secretários sabem que estão jogando uma cartada tão perigosa quanto aquela que levou Jânio Quadros à Presidência da República, mas Aluízio Alves, primeiro deve ter consciência de que se largar a cartada pelo meio, tal como Jânio, não será mais eleito nem mesmo prefeito de seu Município. Renúncias por aqui não haverá – e disto ninguém duvida – mas largar a cartada não é só renunciar, é sobretudo blefar. No pé em que estão as coisas, com Miguel Arraes cavalgando de rédea solta em seus calcanhares, com os cursos de alfabetização de adultos entregues a universitários vastamente politizados (nos mais diversos sentidos, mas conscientes da necessidade de um Brasil brasileiro), com um mundo de promessas feitas aos lavradores, aos operários, às professoras e às mães de família, tendo já começado a desencadear a onda de vibração por uma vida que mereça a pena ser vivida, o Governador do Rio Grande do Norte não poderá parar. E se o fizer, ficará estatelado no caminho, vendo seu Estado continuar no ritmo da marcha batida que aqui mesmo se levanta, porque “de pé no chão” ou de alpercatas, quando um povo começa a pensar, a ler, a trabalhar, conscientemente, ninguém o contém.

AluízioAlves começou a revolução branca, ou melhor, a revolução verde esperança, que é a sua cor, dele. Da vitória de seu programa depende que a esperança do povo não mude de cor, porque povo daltônico é o diabo. Sim, o Governo do Rio Grande do Norte só pode ser composto de doidos, doidos decididos a tirar o pino da bomba relógio para que ela não leve pelos ares todas as esperanças de um povo também doido, mas de fome, de miséria, de enfermidades, de ignorância e de inércia. E, se o pino não for retirado a tempo? Se houver “forças ocultas” que impeçam essa equipe de malucos de tentar provar que, mais uma vez, no Brasil, a História se repete melhorando as coisas sem armas, sem sangue e sem perda de jovens indispensáveis à construção, apenas com a compreensão de que o momento foi chegado de libertar isto ou aquilo, de evoluir neste ou naquele sentido? Se houver retrocesso da “Aliança”, que farão eles, os responsáveis pelo destino do Rio Grande do Norte? Bem, esta é outra história que só a História poderá contar, mas que me atreverei a prever em artigo a seguir.

22 anos sem Luiza Barreto Leite – 2

(☼01/10/1909, em Santa Maria, RS, † 01/12/1996 no Rio de Janeiro, RJ)

Luiza Barreto Leite 009 (2)Anotações sobre o tempo de viver

Há o tempo de semear e o tempo de colher: isto Elisa aprendera muito cedo, vendo e ouvindo as coisas da Estância. Não da sua estância, naturalmente, que de seu nunca tivera mais do que a diminuta varanda do apartamento fabricado em série para os inumeráveis contribuintes de Institutos. Lembrava-se, com mais ternura que saudade, dos grandes quintais das várias casas em que alimentara seus sonhos de grande cidade.

E agora, na penumbra precoce. Observando os reflexos do sol através dos sujos blocos de cimento armado que se interpunham entre ela e o horizonte sonhado, imaginava o pampa longínquo e a frase aprendida na infância martelava-lhe as têmporas. Porque a frase lhe trazia a memória da estância que não chegara a conhecer? A estância onde sua mãe traçara um destino de disco voador sem astronauta.

Quando Elisa nasceu, seu avô já havia morrido e, com ele, toda a glória da família. Ficara a lenda do latifundiário que tudo perdera, inclusive a vida, por culpa de sua alma de libertador, incapaz…[1]

A volta

Aqui estou eu, neste anoitecer de 1º de janeiro de 1979, dez anos após o maior desmoronamento desta minha vida[2], tão beneficiada por quedas, trambolhões e rolar de ladeiras e morros, já que montanhas altas nunca me foi dado escalar. Estou um tanto zonza, quase apatetada, e as ideias se aglomeram em minha cabeça, transformando-a, mais uma vez, em um fantástico liquidificador, onde bailam ingredientes impossíveis de misturar, tais como a compreensão, a angústia, a dúvida, o medo, a descrença e a esperança.

[1] Este texto inacabado sobre Elisa, personagem certamente fictício, contém referências à História de Luiza. Provavelmente é uma tentativa de conseguir contar sua vida e seus pensamentos utilizando-se de uma protagonista ficcional. O avô latifundiário com espírito libertador foi o Coronel Luiz Gonzaga de Azevedo (☼19-08-1854 em Cruz Alta, RS, e †07-09-1909 em Tupanciretã), primeiro Intendente (Prefeito) eleito de Vila Rica (logo depois renomeada como Júlio de Castilhos), município onde fica a Estância Vista Alegre, que pertencera ao bisavô materno de Luiza, o farroupilha Serafim Corrêa de Barros, O Bravo, e onde sua avó, Francisca Corrêa de Azevedo, e sua mãe, Gonçalina Corrêa de Azevedo, cresceram. A estância, referência nostálgica de minha mãe, já não era da família quando ela nasceu. Mas essa é História para ser contada em outra hora e talvez por outra pessoa, mais informada que eu.

[2] No dia 19 de novembro de 1969, fugindo do Exército, que me procurava por atividades políticas, entrei na clandestinidade. No dia seguinte, meu irmão, Sergio Sanz, foi preso em meu lugar, sendo levado para o Quartel da Polícia do Exército. Aí, para Luiza, começou um pesadelo que lhe traria à memória tudo que passara na Ditadura de Getúlio Vargas com a prisão de seu irmão, o jornalista Barreto Leite Filho, consequência da apreensão do arquivo de Luiz Carlos Prestes. Quando fez esta anotação, Luiza, ativa no Comitê Brasileiro de Anistia, estava sob a tensão da possível aprovação da Lei que permitiria a volta ao Brasil de numerosos banidos e exilados, entre eles eu, minha companheira Maria Odila Rangel e nosso filho João Luiz Rangel Sanz, o Joca Sanz., o que aconteceu em agosto daquele ano.

22 anos sem Luiza Barreto Leite

☼ Santa Maria, RS, em 01/10/1909 † Rio de Janeiro, RJ, em 01/12/1996

Luiza Barreto Leite 016

Luiza Azevedo Barreto Leite Sanz foi educadora, jornalista, atriz, radialista apaixonada por seus ofícios; mãe, avó, bisavó,filha, irmã, tia, cunhada, amiga e professora amantíssima, além de esposa paciente e fiel, enquanto durou. Amor que estendia também a alguns dos seus professores e colegas. Foi também sindicalista, participando da Diretoria do Sindicato dos Artistas do Estado do Rio de Janeiro, militando no Sindicato dos Jornalistas e participando da Fundação, em 1945, do Partido Socialista Brasileiro, ao lado de seu irmão, o jornalista Barreto Leite Filho e do crítico de Arte e pensador político Mario Pedrosa. Uma das realizações de que mais se orgulhava era a criação do I Seminário de Dramaturgia Carioca. Fundou Os Comediantes, marca fundamental do moderno Teatro Brasileiro, a Cooperativa de Espetáculos Novos de Arte, a primeira iniciativa autogestionária de empresas cênicas no Brasil e pertenceu ao Teatro Popular União e Olho Vivo, praticamente desde a fundação até sua morte. Luiza foi a pessoa mais agregadora que conhecemos, como lembra meu filho André Luiz da Silva Sanz.

Durante sua vida, sobretudo na maturidade e na velhice, fez anotações em todos os papéis que tivesse às mãos, incluindo livros de contabilidade e de atas cuja vida útil já terminara. Pesquisando em caixas de papelão, pastas e envelopes para tentar recompor os registros de sua vida e recuperar obras inéditas, correspondências, versões originais de artigos, roteiros, peças e livros, alguns nunca publicados, eu as encontrei. Publico aqui algumas destas anotações, com o carinho de seus filhos Sandra, Sergio e Luiz Alberto por essa mulher preocupada com toda a Humanidade e nostálgica do seu Rio Grande do Sul.

Anotações de uma mulher preocupada

Estou sempre preocupada com alguém ou com alguma coisa. Parece-me estar sempre em dívida. Com a vida? Com a morte? Com as pessoas? Dívidas de dinheiro, jamais! Sempre pago todas em dia. Só atraso o analista e um ou outro milionário, e assim mesmo não por muito tempo. O analista é milionário? Sei lá, nem me interessa. Ou talvez seja. Milionário de ternura. Da ternura que ele sabe captar, pois conhece o segredo.

Sim, é isto: detesto dever e por isto até ternura dou mais do que me pedem. Mais do que as pessoas são capazes de suportar. Ou dava. Agora estou ficando diferente. Começo a só dar o que pedem e, então, noto o quanto as criaturas, emocionalmente, pedem pouco. Talvez desejem, mesmo ardentemente, mas não pedem e parecem sufocadas quando a gente insiste em dar nas horas fechadas.

Sim, é isto: há horas fechadas e horas abertas, como portas. Mas quem se interessa por penetrar através das portas sempre abertas? Mas, às vezes, as portas se abrem, ou são feitas de vidro, justamente para não despertar a atenção dos mexeriqueiros, dos ladrões ou da polícia. Pois só os mexeriqueiros, os ladrões e a polícia penetram onde ninguém os quer. (…)

(Escritas provavelmente em meados dos anos 60)

Aquela consciente e racional

“Aquela que traiu e aquela que foi traída
Aquela que tanto amou e aquela que foi amada
Aquela que viveu e aquela que sonhou
Aquela que tudo soube e aquela que ignorou.

Todas um dia envelhecem e,
ao encarar a face da morte,
encontram no infinito a pureza da solidão.

Por isto, é preciso rezar por aquelas que morrem cedo,
por aquelas que não sofreram e da vida nada levaram.”

Encontrei este arremedo de poema entre as mil notinhas que vivo escrevendo e perdendo — ou jogando fora. Pois vou aproveitá-las de agora em diante em homenagem aos que ainda acreditam em mim. Em homenagem sobretudo às minhas amigas Heloisa e Wanda[1], responsáveis pelo livro que talvez saia deste amontoado de fatos e memórias distorcidas. E também de Betinha e Arlette[2], que sempre acreditaram em mim, e, mais ainda, de Luiz Alberto, meu Neném, e de José Ribamar[3], que não gostam dos meus livros porque acreditam que posso fazer melhor.

Será meu o poema acima? Só pode, de tão ruim, se fosse de outra, nem a viciada em novela de Tv que minha parte consciente renega teria coragem de copiar e guardar. Pois esta sou eu, consciente, racional, conservada e cultivada

(A letra, ainda firme, indica o final dos anos 80, começo dos 90 como época provável )

Ânsia frustrada

Hoje, uma das minhas vizinhas falou:

“ Eu sempre via você no Café Amarelinho. Você sacudia lindos cabelos dourados caídos sobre os ombros e eu dizia:

‘— Não me conformo de ver uma garota tão bonita casada com um homem tão feio[4].’

“Um dia me explicaram que ele era muito inteligente e vocês se entendiam muito bem.”

“— Muito inteligente, muito mais do que ele mesmo pensa – respondi – mas, de que serve a inteligência incapaz de construir.”

E fiquei pensando: de que nos serve lutar contra a ignorância enquanto o mundo for dominado pela neurose? Há ignorâncias construtivas e genialidades piores que incêndios na mata, mas haverá neurose sem ignorância? Afinal, que será a neurose senão a obscura ânsia de realização através do conhecimento construtivo? Ânsia frustrada.

[1] As escritoras e dramaturgas Heloísa Maranhão e Wanda Fabian. Heloísa também lecionava na Escola Dramática Martins Penna, como Luiza.

[2] A editora Elizabeth Lins do Rego, responsável pela publicação de “A Mulher no Teatro Brasileiro”, de Luiza, e Arlette Neves Milito, jornalista, amiga e umbandista, como Luiza.

[3] Dr. José Ribamar Neves, irmão de Arlette, médico e intelectual brilhante, amigo fiel e leal de Luiza, a quem ela queria como um filho.

[4] José Sanz, Marido de Luiza, era crítico cinematográfico e de jazz, Curador da Cinemateca do MAM, organizou o Simpósio de Ficção Científica do FIF, foi editor, livreiro, sindicalista bancário na adolescência e juventude, fez parte da Cooperativa se Espetáculos Novos de Arte, presidida por Luiza, do Teatro Experimental do Negro, assistente do cineasta Alberto Cavalcanti, tradutor e coordenou coleções de Ficção Científica, entre outras muitas atividades.