Bom Retiro, meu amor II

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Luka Krsux, Ana Elisa Moro, Flávia Sztutman, Juma Tanaka, Angelita Alves e Leandro Soussa em plena Feira Fashion. No canto direito, o codiretor Rogerio Tarifa.

A nova comunidade tem como finalidade a própria comunidade. Isto, porém, é a interação viva de homens íntegros e de boa têmpera na qual dar é tão abençoado como tomar, uma vez que ambos são um mesmo movimento, visto ora da perspectiva daquele que move, ora daquele que é movido. (Martin Buber)

Onde dar é tão abençoado como tomar

Luiz Alberto Sanz

Fotos: Graciela Rodriguez

Nos meus encontros com o Teatro Popular União e Olho Vivo, ao longo de décadas, foi crescendo um sentimento, uma sensação, de que em seu seio e no de outros grupos que receberam sua influência, como Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta FavelA e Brava Companhia, está em processo uma transformação definida pelo filósofo Martin Buber há muito tempo: o surgimento da Nova Comunidade.

E a nova comunidade tem como finalidade a Vida. Não esta vida ou aquela, vidas delimitadas, em última análise, por delimitações injustificáveis, mas a vida que liberta de limites e conceitos, pois conceitos são curiosas andas para pessoas cujos pés não suportam a terra por ser demasiado áspera e selvagem; entretanto, aquele que conseguiu situar-se na própria vida, aquele que aprendeu a falar a linguagem da ação, festejará sorridente sua libertação da rigidez escravizante do pensamento, e após longo afastamento, a reunificação de suas forças na unidade da vida. Na verdade, há também em homens individuais comunidade e harmonia de contradições que existem lado a lado. (Buber, M., Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, p.31 e 32)

Bom Retiro, meu amor, no processo de pesquisa e criação, nos ensaios, nos bastidores, na encenação, nas confraternizações pós-espetáculos e até nas redes sociais, habitualmente espelhos de vaidades, respira e transpira esse espírito de diálogo e comunhão tão fundamental no pensamento e na obra de Buber. O espetáculo e o grupo, em simbiose, formam um caleidoscópio no qual convergências e contradições se harmonizam e vivem lado a lado.

Em seu livro fundamental, Eu e Tu, Buber finca as raízes da Filosofia do Diálogo, que vai desenvolver e enriquecer ao longo de sua obra, especialmente, para mim, nos textos incluídos pela editora Perspectiva nos livros Do diálogo e do dialógico e Sobre comunidade.

Para nós, porém, que queremos criar a comunidade e elevar a Vida, comunidade e Vida são uma só coisa. A comunidade que imaginamos é somente uma expressão de transbordante anseio pela Vida em sua totalidade. Toda Vida nasce de comunidades e aspira a comunidades. A comunidade é fim e fonte de Vida. Nossos sentimentos de vida, os que nos mostram o parentesco e a comunidade de toda vida do mundo, não podem ser exercitados totalmente a não ser em comunidade. E, em uma comunidade pura nada podemos criar que não intensifique o poder, o sentido e o valor da Vida. Vida e comunidade são os dois lados de um mesmo ser. E temos o privilégio de tomar e a oferecer a ambos de modo claro: vida por anseio à vida, comunidade por anseio à comunidade. (idem p32)

É nítida a benção que recebemos dos criadores, executores, produtores e apoiadores de Bom Retiro, meu amor, quando nos oferecem vida por anseio à vida, comunidade por anseio à comunidade. Colhem de nós, público, que a eles os oferecemos prazerosamente, os olhares, os gestos, as atitudes de aprovação ou desaprovação, geradas dialogicamente por suas atitudes, olhares, palavras, gestos, timbres, notas musicais, efeitos sonoros e de luz, cores e formas cenográficas, de adereço e vestuário. Essa beleza que os bons espetáculos transmitem. Omnipresente, Cesar Vieira mostra o caminho, regendo as dramaturgias, observando incansavelmente cada detalhe, aconselhando, sugerindo e harmonizando todos os aspectos do espetáculo que é, sem dúvida, a marca da contemporaneidade do TUOV, resistindo e avançando ininterruptamente há 53 anos.

Forma-se uma comunidade multifacetada na qual interagem bastidores, palco e plateia. Por mais efêmera que seja sua duração, os rastros e consequências continuarão em nossas memórias e sentidos, refletindo-se em nossa atitude perante a vida.

Polifonia

É difícil escrever sobre as partes que compõem um espetáculo verdadeiramente bom. Se algo se destaca a ponto de a plateia notar é sinal de fraqueza, rachaduras no casco do navio.

Sobretudo a boa direção não é obviamente identificada pelo público comum. Apenas lá está, seja individual, em parceria ou coletiva. Sem ela, o espetáculo moderno não existiria, não teria a unidade e a harmonia demonstradas em Bom Retiro, meu amor. Mas é essencial que apreciemos não apenas a “unidade diferenciada de alta complexidade” da Teoria das Estranhezas de UED Maluf, citada aqui no artigo anterior. Os isomorfos, ou fragmentos, que interagem para compor essa unidade têm vida própria. Se não fosse assim, teríamos apenas uma amálgama sólida, mas informe, sem atrativo.

Um dos elementos mais notáveis deste espetáculo, que tem por linha narrativa a diversidade trazida pelas migrações que fizeram a particularidade do Bom Retiro, é seu caráter polifônico. Não tomemos a palavra literalmente, reduzindo-a ao sentido musical. Embora ele possa ser o ponto de partida desta análise. A trilha sonora criada por Rogério Guarapiran (também membro da Comissão de Dramaturgia) é polifônica, estrito senso. Não somente combina músicas independentes, como harmoniza vozes e sons diversos simultaneamente.

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Lívia Loureiro canta “Duerme Negrito”, ladeada por Juma Tanaka e Angelita Alves, enquanto Mei Hua Soares desenreda o fio da história das oficinas de suor.

Isto se evidencia, entre outros pontos, em uma das subcenas mais fortes, que pausa e frisa a cena da tragédia de Romeu e Julieta proletários: Lívia Loureiro interpreta de maneira magnífica e pungente, Duerme Negrito, canção de ninar da região fronteiriça entre Colômbia e Venezuela, capturando a atenção do público com sua voz e a clareza das palavras. Iluminação, música, interpretação, cenário e figurino ressaltam o caráter expressionista desta inserção, quebrando o realismo épico para que volte com ainda mais força. Uma quebra dramática que acrescenta uma nota particular à polifonia do espetáculo.

A trilha contextualiza as épocas de migração associando ritmos delas contemporâneos. Há que destacar todos os membros da “banda”, que tocam e trocam de instrumentos e participam do elenco com talento e maestria. Babi Pacini nos oferece suas belíssimas e suaves voz, postura corporal, face e interpretação. Pedro Fraga, nas cordas e na interpretação e Babi trazem a experiência do conjunto Samba do Bule, assim como o coordenador musical Cesinha Pivetta. Este, desde a infância no TUOV. Na percussão, o também ator Oswaldo Acaleo, aportando a consciência e a práxis que construiu na vida de lutas e na longa jornada do Olho Vivo, no qual foi protagonista de João Cândido do Brasil, a Revolta da Chibata e teve papel relevante em A cobra vai fumar. Desta vez, afastado das atividades teatrais, foi assistir a um ensaio e, convidado, voltou ao grupo, reforçando a interação entre os novos e a tradição.

A polifonia se afirma também na diversidade de vozes que contam uma só história em outra das cenas que mais me impactaram. Um dos clímax da peça: as mulheres da vida. No que seria um monólogo em um teatro dramático tradicional, as atrizes contam na primeira pessoa uma só história que é, em si, a de um mosaico de mulheres levadas à prostituição por uma sociedade injusta e exploradora. Não é a das mulheres que escolhem ser profissionais do sexo, mas das proletárias sem alternativas. Diversas vozes, diversos corpos, diversos movimentos se harmonizam, não afloram as possíveis diferenças técnicas e artísticas, não se rompe o mosaico. São diferentes, mas são uma. Parabéns Juma Tanaka, Ana Elisa Moro, Mei Hua Soares, Angelita Alves, Danila Gonçalves e Flávia Sztutman.

O início e o fim

E assim é, desde o começo da encenação, quando os intérpretes fazem um chamado aos espectadores, cantando o hino do TUOV, para que se tornem público; e será até o final, quando deixam à plateia a responsabilidade de ser atores de sua própria história. Restaura-se um arco que nos leva aos momentos finais do espetáculo fundador do grupo: O Evangelho Segundo Zebedeu, no qual os artistas do circo conclamam a rebelião, sem obter resposta. Então, como agora e sempre, cabe ao público refletir e agir. Suas contribuições à polifonia são o silêncio, as palmas e as vozes que debatem em suas mentes.

Chamados os espectadores a seus lugares, elenco e personagens entram em cortejo, conduzidos pelo Rei Momo (Neriney Moreira), da peça do mesmo nome, ponto alto no repertório do grupo, e seus súditos mestre-sala e porta-bandeira Romeu (Leandro Soussa) e Julieta (Juma Tanaka), compondo a comissão de frente que recepcionará os imigrantes e “costurará” a conexão entre cenas diversas, com destaque no féretro de Julieta e Romeu. Papel semelhante desempenham os intérpretes de Julieta (Mei Hua Soares, também integrante da Comissão de Dramaturgia) e Romeu (Dante Kanenas), cujas personas são aedos desta tragédia, assim como o fantoche Saci (manipulado pela Catadora de Lixo/Danila Gonçalves) que, comenta, desconstrói, critica enredo e falas enganosas.

Juma e Leandro desfilam e dançam com grande habilidade e beleza. É difícil ser porta-bandeira e mestre-sala em qualquer lugar, ainda mais em espaço tão estreito quanto o da passarela do TUOV, com público sentado no chão. Além de dançarem belamente, com postura clássica, como é o desejável, cumprem os preceitos básicos de seus personagens: a bandeira em momento algum deve ou pode tocar ou ser tocada, até que o mestre-sala a segure para beijá-la e exibi-la, aberta, para a plateia. E este deve proteger bandeira e porta-bandeira o tempo todo.

Como todos no elenco, Juma e Leandro assumem outros personagens, seja na greve de Perus, no desfile de modas ou na mobilização das “oficinas de suor” onde costureiras e alfaiates subalimentados trabalham até a exaustão. Mas têm a seu cargo escoltar o Momo que ora quer desanimar os imigrantes desmanchando seus sonhos de um futuro maravilhoso, ora busca submetê-los ao seu poder monárquico, para, logo, curvar-se aos argumentos dos recém-chegados e às ponderações do conselheiro mestre-sala e entregar ao povo sua coroa e deixar a História e a história seguirem seu rumo.

A chegada dos imigrantes é um abre-alas tragicômico em que se associam sofrimento, esperança e farsa. A partir daí, o espetáculo prende a atenção e desperta a curiosidade. É preciso olhar para todos os lados, pois cada ângulo nos conta algo diferente. Assisti ao ensaio geral no sábado 15 e aos dois espetáculos de estreia no domingo 16, sentado em diferentes posições na plateia. Em cada um descobri coisas novas e percebi como toda a equipe aperfeiçoou a encenação, confirmando uma máxima da tradição teatral: o espetáculo só está pronto quando acaba. A cada momento, todos nele envolvidos recebem diferentes estímulos e aprimoram, inovam.

O amor é mais forte que o revólver

O clímax da encenação é a sequência de cenas em torno da indústria da moda, composta pela “feira fashion”, as intervenções da “Catadora de Lixo Fashion” e do seu amigo Saci, as “Oficinas de suor”, o “Romance de Romeu e Julieta costureiros” e seu desfecho com a morte dos amantes resumida na canção “O amor é mais forte que o revólver”, até onde sei, criação coletiva, interpretada por Dante Kanenas em expressivos entoação e “gestus” épico. Do desfile de modas participa praticamente todo o elenco, com Flavia Sztutman, Leandro Soussa e Luka Krsux frisando o tom grotesco e Juma Tanaka, Angelita Alves e Ana Elisa Moro harmonizando a sátira com movimentos incisivos, embora afetados.

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Danila Gonçalves e o Saci mantêm o público e seus colegas em suspenso. Vejam o olhar de Mei Hua Soares para ela.

Aqui, preciso falar de Danila Gonçalves. Jamais a vira representar, assim como à grande maioria dos demais membros do elenco. Para mim, é uma atriz completa, que se aperfeiçoará na jornada que tem pela frente. É jovem, mas já nos pega pelo nariz e pode dizer: Estão ouvindo o que estou dizendo? Estão vendo o que estou fazendo? A um tal ponto que seus próprios colegas param para observá-la. Há uma foto que incluí nesta matéria em que aparecemos, o público (eu entre outras pessoas), de um lado, e Mei Hua (outra atriz extraordinária), olhos brilhantes, pendentes de sua interpretação. Na subcena que se segue à feira fashion, em alguns movimentos da melhor tradição circense, Danila coloca um fecho estrondoso à derrocada da indústria.

Nesta sequência, o que se destaca é, mais uma vez, a polifonia no sentido amplo, em que direção, figurinos, adereços, música, iluminação e interpretação se harmonizam e impactam, tecendo uma unidade em que horror e beleza não se opõem. Em que o lindo e bravo casal executado por se amar e seu amigo por defender seu direito ao amor, tornam-se símbolos de uma mudança que há de vir, “uma expressão de transbordante anseio pela Vida em sua totalidade”.

As atuações de Mei Hua Soares e Dante Kanenas têm que ser destacadas. Narram enquanto agem, mantêm o ritmo comedido e a emoção contida, embora intensa, forte. Seu distanciamento permite que o impacto emocional se dê na plateia onde é seu lugar, negando-lhe a catarse. Marcaram-me profundamente.

E o final? O final fica por conta de um diálogo-duelo de dois bons intérpretes, o veterano Neriney Moreira e o novato Luka Krsux, com a plateia. A cada sessão deverá crescer dramaturgicamente.

Um espetáculo com tantos matizes de todos os tipos não existiria sem a Direção Geral e a Codireção sábias e apaixonadas a cargo de Cesar Vieira e Rogerio Tarifa e a Coordenação artística, de cenários e figurinos de Graciela Rodriguez, que já vem, a cada montagem do TUOV, refinando cenários e vestimentas. De gerações e formações distantes, interagem confirmando a frase de que tanto gosto, dita em cena por Dante Kanenas: “O tempo não é dinheiro, é o tecido de nossas vidas”. Juntos, tecem uma nova vida, tendo como parceiros alguns dos melhores profissionais hoje em atividade: Luís Mármora no treinamento de atuação, Ester Freitas no treinamento vocal, Marilda Alface na preparação corporal, Gil Teixeira na iluminação, Walter Quaglia na pesquisa, Maria Tereza Urias na Direção de produção, Natasha Karasek na produção e Renê Kostanny na assistência de produção. Particularmente notável é a equipe de Cenografia e Figurino, com Lívia Loureiro, assistente, e os ajudantes Juma Tanaka e Edson Rocha.

Só posso desejar que os leitores usufruam da encenação como eu estou fazendo.

Serviço: O espetáculo entra em temporada hoje, 12 de janeiro de 2019, no Teatro Popular União e Olho Vivo, à rua Newton Prado 766 no Bom Retiro, São Paulo, Capital. Duas sessões, hoje e amanhã às 16:30 e 19:30h. Ingressos serão distribuídos gratuitamente, com uma hora de antecedência.

O Geógrafo Reclus e sua Anarquia pela Educação

Excelente resenha das obras de Réclus. Um chamamento à leitura deste importante pioneiro do pensamento libertário. Especial atenção para Anarquia pela Educação.

Organização Popular

(por: W. B.*)

A Editora Hedra tem uma bela coleção com mais de cem livros de bolso. Entre eles, o interessantíssimo Anarquia pela Educação, com tradução de Plínio Augusto Coelho. Trata-se duma coletânea de escritos do geógrafo anarquista francês Élissée Reclus. Nascido em Sainte-Foj-la-Grande a 15/03/1830 e falecido em Touhout (Bélgica) em 04/07/1905, esse pensador nos deixou valiosos textos, alguns dos quais figuram no livreto do qual nos ocupamos aqui.

Em “A Anarquia” (elaborado em 1894), Reclus nos fala sobre a gênese do Anarquismo, enfocando suas ideias chave. Estas, na verdade, já precediam em muito o movimento político surgido sob esse nome no século 19. Nesse sentido, a anarquia como ideia e como prática social veio antes do Anarquismo. Sociedades sem Estado e sem exploração são mais do que uma possibilidade: são realidade de muitos lugares em diferentes épocas.

O texto “Por que somos anarquistas?” (1886) é…

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