Hoje, minha irmã de sangue e espírito, Sandra Barreto Sanz de Oliveira, completa 79 anos. Seis mais do que eu.
Sempre foi uma pessoa notável, de uma sabedoria que eu próprio demorei a descobrir. Odila, minha companheira de vida, sempre soube. As duas tinham muito em comum. A maneira simples, a conversa franca e direta. Corresponderam-se durante todo o nosso (de Odila e meu) tempo de exílio. Nessas cartas, Sandra deixou registrada a evolução de pensamento que nos aproximou para além do afeto.
Na nossa juventude, Sandra e eu nos afastamos por questões mal resolvidas de fé. Aos treze anos eu me batizara por influência dela e de Tião, Sebastião de Oliveira, seu marido e meu padrinho. Aos 19, tornei-me comunista. Comportei-me muito mal com ela. Fazia provocações, como pôr o emblema da foice e do martelo no lugar da estrela de Belém na árvore de Natal. Infantilidades.
Logo, veio o golpe e ela começou a compreender melhor o nosso lado da questão. Sobretudo depois que eu fui para a clandestinidade e Sergio Sanz, nosso irmão, foi preso em meu lugar. Lembrei isto em um conto chamado Era, publicado em uma revista do exílio em Estocolmo: “Não tem tu, vai tu mesmo”. Quando fui banido, ela, os filhos Zé Luiz, Mônica e Mario Sergio, meus sobrinhos, minhas duas mães, Luiza e Maria Augusta, e minha sobrinha Jussara foram ao Chile. Aí se estreitou a relação dela com Odila (na foto, conversam em um ônibus em Santiago) e aprofundou-se nossa interlocução. Não sem tropeços.
Hoje, ela foi passar o dia na casa da neta Nathalia. Já deve haver fotos por aí, registrando o encontro. Sinal dos tempos. Não pude ir. Amanhã vou tomar um lanche com ela, Tião (que continua a ser meu padrinho, embora eu seja anarquista) e quem mais aparecer. Vamos conversar como sempre fazemos, surpresos ainda pela forma como nos tornamos tão próximos, tão amigos. Ela, sempre católica e eu cada vez mais ateu (se isso é possível). Ela, há décadas, petista. Eu, essencialmente ácrata.
Sandra se tornou a sábia anciã com quem me aconselho nas minhas angústias. Papel que era de minhas mães e de Odila. Amanhã estarei em seu apartamento para testemunhar minha admiração e carinho e pôr-me à disposição, dela e de Tião, como fizeram tantas vezes por mim, sem que eu precisasse pedir.
Em 30 de outubro de 1975, ela nos escreveu para Estocolmo. Nós estávamos nos preparando para transferir-nos a Portugal, onde eu iria trabalhar no Instituto de Cinema e Odila voltaria a estudar. Não deu certo. Vinte e cinco dias depois houve o golpe socialdemocrata que afastou a esquerda do MFA e frustrou meus planos. De alguma maneira, Sandra intuiu que isso poderia acontecer e temia uma solução mais trágica do que a que levou heróis do 25 de Abril, como os capitães Otelo e Paulino à prisão:
“Dia 22 levantei feliz, agradecendo a Deus meus 38 anos. Mais feliz fiquei com a chegada da carta de vocês. Sinto uma saudade que dói até os ossos, uma vontade enorme de estar perto, abraçar, beijar, conversar e até brigar. As cartas que chegam aumentam a saudade, mas me fazem feliz.
“Irmãos, é bom viver quando existe a esperança e o amor que a força de Cristo nos dá.
(…)
“Tenho pensado muito na ida de vocês para Portugal. No princípio, tive muito medo de vê-los sofrer mais uma vez, acreditem, a cena do Chile ainda me vem à mente e fico apavorada.”
Agradeço a ti e ao Tião por serem essencialmente bons e solidários, coerentes com o que pregam. E por tudo que fizeram por mim, minha saudosa companheira e meus filhos.
FELIZ ANIVERSÁRIO, MAIS UMA VEZ, MINHA IRMÃ!