Balanço amargo e otimista em 1969

Luiz Alberto Sanz

Há quase exatamente 50 anos, pouco antes de ir para a clandestinidade, em 19 de novembro de 1969, mas já consciente de que o cerco se apertava sobre mim, escrevi um ensaio crítico sobre a situação do Teatro Brasileiro. Entreguei-o à editoria do caderno cultural que o Jornal do Commercio publicava aos domingos e fui cuidar dos meus afazeres como Diretor da Imprensa Universitária da Universidade Federal Fluminense e pesquisador-colaborador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Era também um dos críticos de cinema do Jornal do Commercio. Em 23 de novembro, quatro dias depois da fuga, com os militares no meu encalço, o artigo saiu publicado.

Volto a editá-lo aqui e agora por duas razões: continuo a achar que toca em questões importantes ainda hoje sobre o caráter do Teatro que se faz no Brasil e considero que oferece subsídios para as novas gerações entenderem o cenário em que a atividade artística se desenvolvia no Brasil. Pouco tempo depois, clandestino e ilegal, refugiado em São Paulo, integrei-me ao Teatro Popular União e Olho Vivo, então ainda sob a identidade do Teatro do Onze, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ali, nos ensaios de “O Evangelho Segundo Zebedeu”, de Cesar Vieira, encontrei a arte que preconizava no texto “A vez do cavalo perneta perdedor ou Vamos botar para quebrar seu Edgard”. Comecei a ensaiar como assistente de direção e cheguei a aceitar assumir a Direção de Produção, convidado por Idibal Pivetta, Oswaldo Mello e Belisário Santos Jr.. Mas não deu tempo, fui preso no dia seguinte ao convite.

No artigo chamo a atenção para como É irritante como escorrem besteiras por esta cidade (Rio de Janeiro) desde que o espetáculo de José Celso Martinez Correia entrou em cartaz”. O espetáculo era “Na Selva das Cidades”, de Bertolt Brecht, que provocou um grande impacto e marcou os novos rumos do Oficina. Dito isto, vamos botar pra quebrar seu Edgard.

A vez do cavalo perneta perdedor, ou vamos botar pra quebrar, seu Edgard

Luiz Alberto Sanz

Há nove anos, 1960, eu escrevia o meu primeiro artigo sobre teatro, substituindo Luiza Barreto Leite — então em longas férias europeias.

Foi um — o primeiro — de uma série longa de artigos que redundaram na profissionalização, através da assinatura de colunas diárias de crítica a cinema e a teatro. Agora, hoje, escrevo o último de uma nova série — ainda em substituição a Luiza Barreto Leite, também em férias. Aproveito e dou um pulo até o tempo em que comecei. É um quase balanço do teatro e da política que o envolve. Amargo e otimista.

1960, sem dúvida, foi o ano de A mais valia vai acabar, seu Edgar.

Talvez tenha sido mais o seu ano que o de qualquer outro espetáculo ou texto, mesmo que de muito melhor qualidade (que a sua não era muita).

Propunha-se às claras uma linguagem, uma temática e um comportamento político para o teatro brasileiro. Buscava-se uma plástica e mise-en-scène condizentes e coadunadas com este tipo de expressão (não conduzida pelo conteúdo — como pretende um cavalheiro, G. Marques, que escreveu no Pasquim em defesa da estética tradicional, ou do evolucionismo na arte — mas significado único e indissolúvel, síntese). O espetáculo lançava um novo grupo, o Teatro Jovem, que, após um conflito intestino, rachou-se de cima abaixo, interrompendo-se a carreira da peça, que passou a ser conduzida pelo Centro Popular de Cultura, nascido das ambições e anseios não só dos integrantes dissidentes — os que mantinham a decisão de prosseguir nas apresentações do texto de Oduvaldo Vianna Filho, dirigido por Chico de Assis e musicado por Carlinhos Lira — mas como de outros intelectuais.

O próprio Teatro Jovem era filho do Teatro de Arena — quanto a influências — que viera de se instalar no Rio de Janeiro e cedera alguns dos seus talentos maiores para desenvolver o grupo amador: Oduvaldo, então um autor-promessa-talento e Chico, capaz de um belo espetáculo mesmo que perdendo-se na plasticidade. Mas, após o racha, correria para os braços de Van Jafa e dos autores duvidosos (Ionesco, russos contemporâneos-oficiais etc. etc.) deixando ao CPC o rumo do teatro político, mais tarde desaprendido ou abandonado por ele próprio, graças a concepções niveladoras, estalinistas, pequeno-burguesas que desaguaram mui fertilmente no colaboracionismo do Grupo Opinião da vida.

As razões para lembrar isto repousam no que se pode ver à distância de nove anos e muitas pauladas. Se em 1960 a posição mais progressista e mais avançada do TB era a de tentar-se traduzir a Teoria crítica da mais valia aos palcos — coisa permissível pelas próprias autoridades — hoje, ela está na negação da cultura, no despojamento do intelectual da sua característica de categoria social, no seu suicídio como artista (da forma como o termo se fixou). Hoje, aqueles que explodiram no início da década estão perfeitamente de acordo com um “evolucionismo” duvidoso, em que passaremos —- certamente — de maneira metódica e lógica de aprendizado moderado e contínuo à nova cultura. Serão os princípios estéticos da burguesia que gerarão — dizem-nos os iniciadores dos centros de cultura — de maneira linear, lógica e destiladora a cultura nova. Hoje, como oposição à linguagem da destruição — que por si mesma conduz a um impasse — é defendida a colaboração, não em termos honestos de necessidade comercial de sobrevivência, de subexistência, mas em termos de recuo político para acumular forças, de salvaguardar a cultura progressista.

É irritante como escorrem besteiras por esta cidade desde que o espetáculo de José Celso Martinez Correia entrou em cartaz. É praticamente impossível para quase toda a gente lúcida e bem-pensante, de nossas artes e outras bossas, compreender que do mar de destruição que se busca lançar sobre a plateia e — mais do que tudo — sobre o nosso acervo cultural de classe só pode sair alguma coisa de positivo a partir de uma crítica bem fundada de seus resultados — processada por seus participantes mesmos.

Está criado o impasse no Teatro Brasileiro: as pessoas deverão confessar que o comércio está institucionalizado. Que a única coisa importante é subsistir, que só é fundamental comer duas vezes por dia (pelo menos), que só se continua a fazer teatro porque, no fundo, é a única coisa que se sabe fazer. O poder de exorcismo que “fazer teatro” tinha em tempos melhores — devemos ver — foi transformado em frustação. Pisar num palco e representar, hoje, tem o mesmo gosto que aquele sentido pelo professor de natação obrigado a ensinar à velha e gorda esposa do comendador que procura exibir-se na piscina comprada para “prazer e devassidão das suas filhas”. Porque é tudo falso, porque nós sabemos que não tem mais sentido, que a arte que fazemos esta desligada do mundo, talvez mais próxima do “não-objeto” de Ferreira Gullar do que ele próprio possa admitir. Estamos num mundo a exigir coisas e a receber lixo.

E os nossos bem-pensantes evolucionistas defendem que o lixo não deve ser feito lixo, mas, já não podemos comer a polpa da maçã, podemos satisfazer-nos com as cascas deixadas de lado, em vez de lançá-las à lata e anunciar aos quatro ventos que o que todo o mundo está comendo é lixo, que o que todo mundo está fazendo é representar um quadro de burlesco, que nós não temos que ouvir o que nos dizem e que, se continuarmos a apresentar nos palcos dos teatros, para o público que nos assiste, é para dizer-lhe: olha aqui, meu caro senhor, não vamos servir-lhe Lixo disfarçado em risoto, vamos, sim, mostrar-lhe toda a porcaria contida no prato e na bebida que te servimos normalmente ou que o dono do restaurante nos deixa servir. Isto, se acharmos que é preciso ainda fazer alguma coisa mais ou menos honesta com o teatro, em termos de preocupação intelectual. A outra solução é continuar a servir-lhes lixo, mesmo aquele disfarçado em arte, mas com a consciência e a honestidade supremas para confessar: Olha, eu sou um bom torneiro mecânico, operário especializado, que sei desempenhar as minhas funções e não comprometo nisso a minha própria opinião.

De qualquer das duas formas, é preciso saber, estamos aguçando e apressando o impasse: traçamos o nosso suicídio como gente de teatro. Para a primeira solução, em breve tempo, atingiremos a compreensão de que ou passamos à segunda ou então vamos ser copeiros e caixas. Porque já estamos sendo assimilados às custas de não adicionarmos nada de novo e, portanto, não aproveitarmos as condições que nós mesmos ajudamos a preparar. Na segunda solução, tornar-se-á patente que, por mais eficazes e técnicos que consigamos ser, em pouco tempo estaremos impossibilitados de servir à nova exigência. Afinal a sociedade de consumo se consome.

Botando para quebrar, ou botando para colar, de qualquer forma marchamos para o suicídio, seu Edgard. Tudo que fizemos ou estamos fazendo não tem mais sentido para o momento em que estamos vivendo. O Teatro Brasileiro, ultrapolitizado há nove anos, hoje contempla sua própria morte e lamenta-a.

No fundo, eu acho que estou tocando a trombeta. Nada é mais chato e lamentável do que ver um cavalo perneta tentando correr sem nenhum outro concorrente que não a própria realidade. Ele nunca poderá ganhar, nem mesmo correndo sozinho E isso é ótimo. Os frustrados profissionais que me perdoem.

Jornal do Commercio (RJ), p05, Caderno de Domingo, 23 de novembro de 1969