SUBSTITUTIVO PARA A MORTE

Luiz Alberto Sanz

Em novembro de 1969 já começara o período de repressão mais violenta e cruel à resistência brasileira. Eu ainda atuava legalmente, dirigindo a Imprensa Universitária da UFF, escrevendo críticas de Cinema e Teatro (estas, cobrindo licença de Luiza Barreto Leite) no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Clandestinamente, fazia parte da rede logística da Vanguarda Armada Revolucionária (VAR) Palmares na qual se haviam fundido a antiga Vanguarda Popular Revolucionária e o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização com a qual colaborava anteriormente, em Niterói. Eu já sentia que minha situação estava mudando e que, breve, eu teria que passar à clandestinidade.

Já publiquei aqui, sob o título geral de “Balanço amargo e otimista em 1969”, o último artigo que escrevi antes de fugir para São Paulo, com os “verdes” no meu encalço: “A vez do cavalo perneta perdedor, ou vamos botar pra quebrar, seu Edgard”. Mas, no começo do mês, eu publicara a crítica sobre Na Selva das Cidades, de Bertolt Brecht, em montagem do Teatro Oficina dirigida por José Celso Martinez Corrêa, que continua a ser referência das dramaturgias rebeldes em nosso país. Eu a republico aqui por identificar no atual momento brasileiro, em todos seus aspectos, os sintomas da falência moral, cultural e política que caracterizaram a ditadura iniciada em 1964, sobretudo quando gerida pelo General Médici. Dizem que a História se repete como farsa, então me passa pela cabeça que a crueldade de um tenente expulso do Exército reproduz a crueldade de um General com bizarrice. Tempos bizarros os que vivemos, exigem a desconstrução da sociedade para construir uma Federação de Comunidades. Na Selva das Cidades é atual como foi atual quando escrita pelo jovem Brecht, nos anos 20, influenciado pelo Anarquismo, e quando montada pelo já maduro José Celso, em 1969.

O ensinamento do caos ou os caminhos do ódio [i]

Luiz Alberto Sanz

Ítala Nandi, ao centro, momentos antes da cena do estupro, em “Na selva das cidades” (1969), do repertório do Teatro Oficina (Fotos: Arquivo) https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/o-primeiro-nu-frontal-a-gente-nao-esquece/

Decidi preparar-me. Uma crítica sobre um espetáculo alicerçado em Brecht torna-se elemento importante para sustentar ou derrubar um jovem intelectual. Dá status. Fui em busca da bibliografia mínima necessária a um crítico de respeito. Espalhei pela mesa os 134 livros, 300 revistas e 2.000 recortes considerados básicos à compreensão de Bertolt Brecht, Homem e Obra. Achei-me equipado desta forma, em condições de não enrubescer diante dos melhores de nossos críticos. Sentei diante de toda esta memória e opinião, convicto de estar prestes a honrar os melhores elogios e ocupar aquela posição decisiva como intelectual, posição que vinha chutando constantemente, por irreverência malsã.

Sentei (talvez Brunstein, Willett e outros tão importantes exegetas já se houvessem colocado nessa mesma posição um dia) e pensei em Brecht: “O ponto de vista estético não é adequado para as obras que estão sendo escritas hoje, mesmo se conduz a julgamentos favoráveis. Pode se verificar isso em qualquer movimento em favor dos novos dramaturgos. Mesmo quando o instinto dos críticos os orientou corretamente, seu vocabulário estético deu-lhes muito poucos argumentos para sua atitude favorável e nenhum meio adequado de informar o público. Além disso, o teatro, enquanto encorajava a produção de novas peças tão forneceu nenhum guia prático. Assim, no fim das contas, as novas peças apenas serviram ao velho teatro e ajudaram a adiar o colapso do qual depende o seu próprio futuro”.

UM PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Lembrei ainda as continuações destas palavras de 1927, tentando fazer com que não atrapalhassem minhas disposições de glória:

“É impossível entender o que está sendo escrito hoje, ignorando-se a ativa hostilidade da geração presente a tudo o que a precedeu e participando-se da crença generalizada de que essa hostilidade é um clamor sem importância que deve ser desprezado. Esta geração não quer simplesmente capturar o teatro com suas plateias e o resto, para apresentar boas peças contemporâneas na mesma sala de espetáculo e para o mesmo público; nem tem ela nenhuma possibilidade disso. Mas tem a possibilidade e o dever de capturar o teatro para um público diferente. As obras que estão sendo agora escritas estão, cada vez mais, conduzindo ao grande teatro épico que corresponde à situação sociológica; nem o seu conteúdo nem a sua forma podem ser entendidos senão pela minoria que compreendeu isso. Não vão satisfazer a velha estética; vão destruí-la”.

É o caos, e com ele o fechamento das milhares de fontes básicas, a subversão do pensamento, a deterioração do compreensivo e do racional, o despencar da Arte (e não é ela eterna?), da Harmonia (e não é ela fundamental?), da Beleza (e não é ela intrínseca à criação artística?) e dos conceitos teatrais básicos. Se a sociologia é permitida (e científica) e se a arte deve ser entendida sociologicamente, então tudo é permitido. E não adianta pensar, como sempre se pensou, que não vamos entender o que está acontecendo; e não adianta ir às fontes, que elas servem licores preciosos a quem sofre de cirrose; e não adianta olhar com os olhos do Perene o que é novo e perecível, o que elimina o passado para eliminar-se em breve. Instituída a Sociologia nas relações artísticas, não sobra pedra sobre pedra. É no caos que se vai buscar a luz.

A OFICINA DA DESTRUIÇÃO

O palco do João Caetano estremece, enquanto as poltronas rugem. Não são poucos os que se lançam à comparação: “Galileu era melhor!”, “Você lembra dela no Galileu?”; ou os que vociferam: “Isto Brecht nunca fez, “Os atores não sabem falar, eu não disse que os jovens atores não sabem falar?

Sobre os tablados de madeira, os intérpretes atiram cadeiras contra as paredes do cenário, queimam papel, jogam areia nas próprias caras, sujam-se de peixes e fazem gestos indecorosos sem reparar que a Direita Baixa está cobrindo a Direita Alta, ou que as peças do cenário ocultam a máscara de cada um. A plateia repara nos gestos e na sujeira, sente o cheiro do incenso mas se esforça violentamente para entender, para encontrar símbolos, para ver sequer um esboço daquele Brecht que os críticos ou repórteres costumam descrever.

Mas o jovem Brecht encontrou-se violentamente com o maduro José Celso no jovem Brasil. E o jovem Brecht escreveu a sua peça há 47 anos, quando os fluidos anárquicos rondavam sua cabeça à busca da luta de classes, antes de compreender o que viria a traduzir em suas teorias como o teatro épico e (posteriormente) dialético. Escreveu-a quando ainda não existiam as condições sociais específicas imprescindíveis ao desenvolvimento do teatro épico (apesar de, somente um ano antes, Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknecht terem liderado a revolta espartaquista). O Maduro José Celso vem há cinco anos preparando-se para a empreitada: montar Na selva das cidades. Mas vivia um processo, o de ter-se formado na compreensão dos valores fundamentais do Teatro, o de ter criado e elevado um grupo de jovens com as melhores montagens de Odetts, Gorki, Fischer e de, após conquistar todos os corações (da burguesia paulistana, à procura de um substituto para o moribundo TBC, aos estudantes da classe média sedentos de alguma coisa indefinível para eles) ter entendido não valer nada o que tinha feito até então.

OS DENTES CERRADOS

O encontro foi de dentes cerrados, de voz na garganta. O maduro Oficina e o jovem Brecht tinham algumas coisas em comum. Para os que gostam de enumerações: 1. Um país conturbado e ainda desorganizado (caos); 2. Um método de pensamento dominante e perfeitamente incapaz de conduzir às soluções exigidas pelo mundo; 3. Um patrimônio cultural perfeitamente imbecil (insatisfatório se preferirem); 4 Ausência de condições para propor alguma coisa em substituição.

Estes pontos determinaram uma explosão: se não há o que pôr, basta-nos tirar, destruir para que alguma coisa possa surgir no lugar, fruto da própria destruição do pensamento das relações, dos hábitos e do comportamento atuais.

Se o público está acostumado a uma forma de Interpretação, a uma impostação do espetáculo, aos conceitos perenes, não há que modificá-los ou tentar torná-los mais atraentes — costurando mais uma vez a vela da jangada para mantê-la em uso — há que destruí-los, fazer com que se tornem cinzas, acabar com a hipnose de espectadores — “intelectuais” ou não — e deixá-los ao léu, impotentes, sem nada que lhes sirva de ponto de referência, exigindo que pensem novamente, que adquiram as verdades que estão no cotidiano, na vida por trás das tradições, da moral, do espiritual.

E é com os dentes cerrados que isto se dá: José Celso, Fernando Peixoto, Othon Bastos, Renato Borghi, Fábio São Tiago, Samuca, Ítala Nandi, Margot Baird, Renato Dobal e quantos hajam sido esquecidos (Luiz Fernando, lá na produção e Lina Bo Bardi na programação visual) nos propõem um novo sentimento inerente ao novo teatro, como à vida que começamos a viver: o ódio.

Antes era o Amor, esta “força avassaladora que a tudo redime e que traz a compreensão e o perdão”. Agora, o presente espetáculo é como a semente que Luiz Carlos Maciel já começara a lançar (e eu não soube ver) e deposita o ódio como a força do nosso tempo.

E os dentes cerrados do ódio não vão para o palco simbolicamente, vão todos, de inteiro. Eles não fingem o ódio do texto, nem precisam imprimir-lhe um tom de estranheza, que ele já é bastante estranho ao público. Os atores, como o encenador e o próprio autor, lançam-se decididamente a falar uma língua inusual para o público (apesar de que as palavras são exatamente as dos dicionários e os gestos os mesmos que qualquer Nelson Rodrigues poderia usar). E não se esforçam para isto: eles falam realmente uma linguagem diferente daquela do seu público. E nos fica bastante claro que o teatro que se faz hoje no Brasil já não serve. É preciso destruí-lo e consequentemente destruir o seu público.

O Oficina está nesta tarefa. Impossibilitado, pelas condições conjunturais, de realizar um teatro científico, de subsistir como profissional fazendo um teatro frontalmente oposto (em termos de a quem dirigir-se) ao existente, lança-se a tarefa de miná-lo, de semear a tempestade do pensamento desenfreado.

E os caminhos do ódio, no teatro como na vida, não se permitem a paralelos. Não serão os psicanalistas que poderão explicá-los, pois se colocam fora do recuperável, do conciliável. É um sentimento sociológico (ah! como isto pode inspirar um admirável artigo de N.R., o poeta das frases feitas) posto no campo das relações impessoais. Há que odiar, para destruir o inimigo e não deixar um resto, um pó, uma pitada de suas ideias, de seus hábitos, de seus conceitos

O SUBSTITUTIVO PARA A MORTE

Mas o público se recupera do primeiro golpe e procura assimilar no nível da superfície, como fez com o Rei da vela e Roda viva, fatores profundamente estranhos ao momento da estreia. E José Celso sabe disto. A guerra que tem que mover é incansável. E terminará por levá-lo ao novo encontro, aquele capaz de propor aos indivíduos restantes da destruição do teatro o novo pensamento, criador e liberto, construtor de gigantes.

Mas os meios são difíceis: em primeiro lugar há que aprender a destruir. Por vezes, o próprio veículo, o ator, pode ser um obstáculo à destruição (como o cenário, a música etc.). Ele foi formado nos moldes do que é preciso destruir então é preciso que se decomponha pessoalmente, descobrindo o que é preciso ficar e o que é preciso expurgar. Do que fica é necessário discernir como torná-lo positivo, como tornar potenciais em forças efetivas. É preciso não conformar-se, nem aceitar simplesmente, duvidar como método e questionar até o último momento a validade de um gesto, de uma palavra, de uma entonação, de uma postura. Elas nos foram legadas e ainda estamos nos primeiros passos.

Então os nossos jovens atores falam mal (não é verdade? não é difícil entendê-los? não é pouco claro o som que projetam? não somos obrigados a nos esforçarmos para entendê-los, ficando desconfortavelmente expostos ao sacrifício de aguçarmos os ouvidos?). Pois, os nossos atores falam maravilhosamente mal. Eles e seus dentes cerrados, suas vozes na gargantas, seus gestos aparentemente mal estudados, corpos largados e posições nada estéticas nos forçam a querer entendê-los. E, aí, o maior problema. Eles não falam nada que o nosso raciocínio bem-comportado posso entender. É preciso abrir o peito à destruição e gritar com eles e lançar manuais e os repositórios da moral à estante mais segura, para só abri-los quando pudermos encará-los criticamente.

Então, descobrimos que os nossos jovens atores estão nos ensinando a representar, pois o que usam é a voz, os braços, o corpo, as roupas e a nudez para atingir exatamente o que atingem — um espetáculo novo, incendiário e destruidor, capaz de impedir que durmamos à sombra da perene estética, da perene técnica teatral, das perenes regras da comunicabilidade. Não há, neste momento, para este público, nestas condições de sub-existência, o que comunicar. Há o que destruir e o que inquietar.

Talvez aí a justificativa do final romântico que José Celso deu à peça, substituindo uma rubrica de Brecht: Garga queima o dinheiro e se vai livre, enquanto BB fazia com que ele guardasse bem guardados os seus dólares. A inquietação mais uma vez substitui a consciência de que, mesmo vencedor, o contendor permanecerá no sistema.


[i] Publicado no Caderno de Domingo do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 02 de novembro de 1969, como análise crítica do espetáculo Na selva das cidades, de Bertolt Brecht, montado pelo Teatro Oficina sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.