Electra I
Luiz Alberto Sanz
A diferença entre o teatral e o cinematográfico na realização de filmes, muitas vezes fica apenas na identidade de um homem com sua câmera. Argumentam para mim que ELECTRA nada tem a ver com cinema por sua mise-en-scène ser teatral, por ter Caccoyannis mantido a sensação da existência de um palco. Não é exatamente verdade. Caccoyannis, na realidade, toma como base estrutura que se atribui à representação do Teatro grego em Agrigenti (não vi, não posso afirmar) ou o que seria uma apresentação teatral, com a particularidade de que sua visão é claramente cinematográfica, já que parte do ponto-de-vista de que película e câmera são mais do que a boca do palco ou o ponto-de-vista da plateia, tornando-as integrantes da ação (não um personagem adicional, mas parte interessada) com técnicas modernas de montagem e movimentação que aumentam sua força.
Caccoyannis foi à procura da essência de Electra, de seu coração e sua alma. Não ficou simplesmente na visão de Eurípedes, conhecedor profundo que é do mito e das tragédias dele oriundas. Não se limitou a visão de superfície, a simples montagem da tragédia. Fez seu trabalho trágico como o personagem. Gritou com todas as forças quando das mortes de Agamennon e de Clitemnestra e quando da perdição de Electra. Surgiu com sua alma ferida e romântica à procura de Electra, junto com Orestes e Pílades.
A estrutura da tragédia de Eurípedes é vista por Caccoyannis como algo dinâmico, moderno, que não mofou ou invalidou-se. Permite que se desenvolva, avance, exista sem um tempo exato, antigo, faz com que tenha valor contemporâneo, atual, e permanente. O drama se passa hoje mesmo, ontem, talvez amanhã. Não é uma questão (como no geral dos filmes históricos, mesmo os melhores) de manter a interpretação da história em sua época, sem permitir-lhe a atualidade. Esta presença histórica da tragédia como atemporal é que lhe dá a dimensão clássica. (Citaria como exemplo o HAMLET de Olivier, que mantém a representação teatral shakespeariana, confrontada com o Cinema em si, transformando a grande tragédia em uma presença acadêmica).
O filme de Caccoyannis se desenvolve em tensão incontrolável, em visão fantástica. Digo que passei por todo o filme pendurado, tenso, ferido pela presença dos personagens, por suas fantásticas existências (não são personagens, são gente, homens e mulheres presentes e vivos).
A utilização do coro grego como solução cinematográfica é um dos ingredientes especiais do filme. Mexem-se rítmica e doloridamente, com suas faces e atitudes trágicas, com suas existências marcadas e suas vozes pungentes. São a consciência do povo grego, são seu espírito e sua expressão. Sua presença na notícia da morte de Egisto, em que se tornam integrantes da ação, da luta heroica de Pílades e Orestes. A morte de Egisto é descrita através da luta dançada de guerreiros mascarados (talvez macedônica, muito semelhante à apresentada ao público brasileiro pelos georgianos).
Electra II
Luiz Alberto Sanz
Deixe meus olhos acariciarem a liberdade. Eurípedes in Electra
As esperanças vãs do coração de um Homem,
ora são cinza, ora esplendor, porém, em breve,
como por sobre o pó dos desertos a neve,
brilham somente uma hora ou duas e após somem.
Omar Khayyam in Rubaiyat – Rubai XVII.
Electra sustentou no peito, por anos incontáveis, o ódio sobre a morte de seu pai, principalmente por seu próprio apresamento e degradação. Lançada à inconcebível pena, para ela e seus iguais, de misturar-se à plebe, Electra o sente e chora desesperada, mas se vê livre e amada, vindo a perceber que a pobre casa pode ser um palácio, e que, muitas vezes, há mais nobreza entre os pobres que entre os fidalgos (mais ou menos o que diz o diálogo). Electra ali encontra seu povo, mas não pode amá-lo nem compreendê-lo verdadeiro pela intensidade do ódio que guarda. Virá a entender ao final, quando o esgota e percebe que sua vida está acabada, apesar da pequena esperança que é Pílades.
Sim, as vãs esperanças de realização da sua vingança, as vãs esperanças de conforto com o seu ato, tanto nela quanto em Orestes são como no rubai de Kayyam, como ele se desenvolvem.
Electra entende que amara sua mãe. Tal quantidade de ódio, tal intensidade, traz algo de grandioso em sua frustração do amor. Orestes era quase nada ainda quando da morte de Agamennon. Seu entendimento era praticamente nenhum, mas foi criado com o fito de vingar-se, de recuperar de Egisto o trono. O ósio por Clitemnestra é ainda maior, completamente insano, descontrolado. Ifigênia, a irmã dos protagonistas, foi morta por Agamennon em sacrifício aos deuses ao partir para a conquista de Tróia, daí a ira da rainha. O Rei passa dez anos na guerra e Egisto assume seu lugar na cama. Este será o instrumento do regicídio e ficará como joguete de Clitemnestra.
A princesa é forte em seu ódio. Só ele a sustenta e com seu fim cairá desmanchada e desesperada. Sem ele não terá mais forças, não mais ficará em pé. Uma sombra que, ao final, será seguida por Pílades.
O resto é dor, o resto é morte, o resto é sentimento dos mais poderosos, lançado impetuosamente ao espectador. O esplendor trágico do amor de Electra, concentrado quase que totalmente no ódio (há uma réstia de afeto quando Orestes, incógnito, lhe chega falando de si próprio). Há grandiosidade em seus olhos lamentosos desrecalcando-se (em chispas de fogo) sobre o corpo morto do vil Egisto. Há amor e ódio em seus corpos doridos e cansados, em suas faces tensas e tristes, em suas palavras de reflexo do inconcebível de sua perda da realeza, quando de sua presença sobre o túmulo de Agamennon.
Electra estivera encarcerada por tanto tempo, por tantas fases, que vê entre aqueles homens a liberdade, que vê em seu ódio o poder trágico de todo o seu povo. Sua destruição humana é belamente construída, seu encontro com a falsa liberdade e seu desengano, ao entender que o nobre realmente está nos corações pobres que os abrigaram e receberam, apesar de seu ódio e desprezo. Orestes o entende melhor.
Sobre Irene Papas só tenho uma coisa a dizer: após vê-la, será difícil imaginar outra Electra, mesmo em sonho.
[1] Esta é uma versão revista da crítica sobre Electra de Michael Caccoyannis publicada em duas partes na coluna de cinema do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 30 de abril e 05 de maio de 1964, à página seis do primeiro caderno e assinada pelo autor como Luiz Alberto, simplesmente.